O conceito e o vivido: uma distinção entre religião e espiritualidade - POR BEATRIZ PINHEIRO

 Quando nos lançamos na tarefa de delimitar conceitos próximos, temos o hábito de buscar na etimologia das palavras um sinal que nos conduza ao ponto exato dessa diferença e nos apegamos a esse argumento pautado na linguagem. É comum, sobretudo em textos de filosofia, que o destrinchar do conceito tome muitas páginas do trabalho, pois a linguagem guarda, e também esconde, transformações históricas importantes para se compreender a realidade. No entanto, para essa distinção proposta, deixarei os dicionários guardados para chegarmos em um outro lugar do pensamento.




Religião e espiritualidade são conceitos que parecem fáceis de serem definidos, sobretudo por dizerem de experiências próximas a nós, mesmo que essas não nos toquem pessoalmente — no caso da religião. No entanto, essa tarefa limitadora que constitui a definição vai se tornando difícil à medida em que deparamos com diferentes perspectivas sobre o fenômeno religioso e as vivências de espiritualidade. Fato é que, apesar de guardarem em si uma diversidade de perspectivas e possibilidades, tendo isso como uma característica em comum, não versam sobre a mesma experiência pois se organizam em lugares distintos.

A religião se sistematiza a partir da organização institucional que direciona alguns aspectos da vida daquelas e daqueles que se consideram pertencente a ela, sendo esses éticos, morais, estéticos e metafísicos. Em linhas gerais, é possível afirmar que a instituição religião, de acordo com o cientista da religião Hans-Jürgen Greschat, se organiza em torno de quatro aspectos compartilhados por um mesmo grupo. Diz sobre o que creem, como vivem, como cultivam e como experienciam a fé. Trata-se, portanto, de um movimento que parte da busca individual do sujeito que se encontra emaranhado em um coletivo e seu conjunto de crenças.

Então, ter uma religião não diz sobre uma posse, mas sobre uma identificação, e é o sentimento de pertença que garante a manutenção do sentido e do cotidiano de quem se afirma religiosa ou religioso. Mas algo dessa vivência se mantém no individual, e é aqui que acontece a confusão entre os conceitos, pois a busca por sentido é o que constitui o cultivo da espiritualidade. Essa, por sua vez, é o próprio movimento dotado de reflexões éticas, morais e estéticas que são significadas e ressignificadas pelo indivíduo diante da sua percepção da existência. Sendo assim, fica evidente que a religião versa necessariamente sobre uma espiritualidade e a constrói a partir de uma narrativa religiosa dotada de símbolos, atos, significados e experiências. Já a espiritualidade não versa necessariamente sobre uma religião e pode ser desenvolvida por sujeitas e sujeitos que se encontram e que não se encontram dentro desses espaços institucionalizados da fé.

Sobre a espiritualidade vivida por pessoas sem religião, podemos dizer ainda que pode ser apreendida a partir de uma linguagem ou narrativa religiosa ou não, visto que esse grupo é formado, de acordo com os dados disponibilizados pelo censo do IBGE, por indivíduos sem religião com crença, ateus e agnósticos. Os sem religião com crença, denominados pela pesquisa de sem religião-sem religião, são sujeitas e sujeitos que não mantêm vínculos com a instituição religião e, ao mesmo tempo, cultivam a fé utilizando da narrativa religiosa. É possível perceber, nesse sentido, a possibilidade de um cultivo de espiritualidade carregada de símbolos e atos vivenciados dentro das instituições que são levados com esses indivíduos quando se desassociam da religião e partem para uma vivência individualizada da crença.

A esse movimento damos o nome de espiritualidade sem religião como forma de dar ênfase às vivências do grupo em questão. Não obstante, ela não se fecha no uso da narrativa religiosa e pode significar em outros lugares que não são representados por um sistema mítico-religioso, como no campo da política, da literatura e das artes. Nesse sentido, pessoas ateias e agnósticas não são excluídas desse sistema de significação, visto que essa articulação é própria da linguagem e, enquanto sujeitas e sujeitos, somos constituídas/os e constituintes dela e por ela. 

É necessário que a consciência da diferença e da singularidade das sujeitas e sujeitos se mantenha também nas pesquisas que abordam pessoas religiosas para que não se caia na armadilha de tratar a/o indivídua/o como grupo, encerrando suas possibilidades de ser naquilo que a instituição afirma, assim como percebê-la/lo de forma infantilizada, como se a religião fosse um limite para uma vivência e significação autêntica e crítica da realidade. Pensar que não há discordância dentro de uma instituição por haver o sentimento de pertencimento naquelas e naqueles que a constituem, se traduz numa tentativa de retirá-la do lugar histórico e temporal impedindo que algumas percepções sociais sejam revistas.

É importante ressaltar que essa diferenciação proposta aqui não se realiza no campo da disputa, pois não há como mensurar quem se dedica mais a um movimento reflexivo diante do mundo e das coisas. O que podemos fazer é observar e analisar os dados de pesquisas quantitativas e qualitativas para compreendermos como a espiritualidade, a fé, a religião e outras categorias são significadas e significam para diferentes contextos e pessoas. Assim, conseguimos traçar alguns caminhos a partir da diferença pautados na materialidade das vivências.

Link: https://revistasenso.com.br/edicao-24/o-conceito-e-o-vivido-uma-distincao-entre-religiao-e-espiritualidade/

Mestranda em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, bacharela em Filosofia pela mesma instituição. Atualmente se dedica à pesquisa sobre espiritualidade não religiosa, ou espiritualidade laica, atravessada por questões de gênero e sexualidade. Membra do grupo de pesquisa Religião e Cultura da PUC – Minas.

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