Terry Eagleton: “O fundamentalismo não é ódio, é medo”

Terry Eagleton (Salfold, Reino Unido, 1943) não deixou um minuto em paz tanto conforto pós-moderno. Antes que Zizek ou Badiou se transformassem em inevitável moda contracultural, ele se dedicou, a partir da literatura, sua principal especialidade, a apontar um por um os lugares comuns dos bem-pensantes da vez. Sucessor do crítico literário e cultural marxista Raymond Williams, uniu a essa não conformidade militante uma sólida educação católica que as leituras e os anos, em vez de aplacar, aprofundaram. “Como diz o Novo Testamento, reconhecerás Deus quando vires os pobres se encherem de coisas boas e os ricos sendo despachados sem nada”, conta por correio eletrônico. “O cristianismo e o marxismo têm um vínculo óbvio em que os dois querem ver os pobres conquistarem o poder. A diferença é que isto, para a fé cristã, é um assunto escatológico, ou seja, que vai além da história, enquanto que o marxismo espera vê-lo realizar-se dentro da história da humanidade.”

Esta adesão dupla à mudança social e à fé católica o levou a polemizar muito com um estranho ser que ele chama de Ditchkens, que não é outra coisa que a mescla perfeita do biólogo Richard Dawkins com o falecido polemista Christopher Hitchens, porta-vozes do novo ateísmo militante e da intervenção norte-americana no Iraque.

Esse tipo de jogo de palavras é a surpresa perpétua de quem se aventura em livros tão conscienciosos e desapiedados como Marx Estava Certo, Ideologia ou Depois da Teoria. Para não falar de suas imprescindíveis memórias, The Gatekeeper: A Memoir (O Porteiro: Memórias) emocionantes e hilárias. “O humor para mim está intimamente ligado ao sem sentido”, diz. “As atividades mais valiosas não têm nenhum propósito ou função além de si mesmas: tocar música, fazer amor, tomar vinho, brincar com os filhos. O mesmo se poderia dizer das piadas. É compartilhar a vida porque sim.”

Mas o normalmente sarcástico e implacável Eagleton, para surpresa de todos, incluindo ele mesmo, parece querer passar da crítica à proposta. Não se trata de otimismo, explica várias vezes em seu último livro – intitulado justamente Hope Without Optimism (Esperança sem Otimismo) —, porque o otimismo é para ele “uma forma de desespero”, mas de uma velha virtude teologal reativada pelo historiador marxista Ernst Bloch: a esperança: “A esperança é um tipo de desejo, mas um que o vincula com um tipo de expectativa. A esperança tem que ser, de alguma forma, viável; tem que ser possível de ser realizada, enquanto o desejo pode não ser. Você pode desejar ser Mick Jagger, mas não pode esperar sê-lo”.

Mas, que podemos esperar da esperança em uma Europa em crise que só parece estar de acordo em estar em desacordo? “Continuamos esperando conseguir as coisas que tradicionalmente quisemos: justiça, igualdade, fraternidade, ausência de pobreza e de violência, etcétera. É pouco provável que exista alguma vez uma sociedade de seres humanos sem violência ou injustiça de algum tipo, mas, dados os recursos globais que possuímos, está totalmente dentro de nossas possibilidades acabar com a pobreza. Nosso sistema de propriedade é o que impede que isso aconteça, e claramente poderia ser mudado.”

Soa então inevitável a palavra revolução, que não é de todo estranha nesse tenaz militante do Partido Socialista dos Trabalhadores. “Quando as pessoas escutam a palavra revolução pensam imediatamente em sangue e barricadas. Mas houve revoluções de veludo, como também revoluções violentas. A revolução bolchevique esteve bastante livre de violência. Alguns processos de reforma foram muito mais sangrentos que algumas revoluções. De todo modo, as revoluções não ocorrem de um dia para o outro. As revoluções que deram lugar às sociedades modernas de classe média levaram séculos em sua evolução. Marx enaltece as classes médias como a força mais revolucionária jamais vista na história da humanidade. Suponho que um revolucionário seja alguém que acredita que não é possível ter o tipo de justiça e bem-estar que necessitamos sem uma transformação completa. Isso, para mim, seria um ponto de vista realista, não extremista. A queda do apartheid na África do Sul também foi uma revolução (política, não econômica) e ninguém considera fanático ou extremista tê-la apoiado. Todo aquele que acredita que foi correto que os Estados Unidos deixassem de ser uma colônia é um defensor da revolução. Ou seja, mais ou menos todo o mundo é.”

"Quando ouvimos a palavra revolução, pensamos em sangue; mas algumas reformas foram mais sangrentas"

Eagleton se defende ao longo do livro de ser um otimista, mas está muito longe de ser um pessimista. Quando se pergunta a ele se o mundo está pior ou melhor que há 50 anos, não duvida em responder que melhorou em aspectos fundamentais. Sua querela com o otimismo como ideologia se baseia justamente em sua falta de fé em que o mundo ainda poderia melhorar muito mais: “A pergunta é se é viável empreender mudanças que poderiam modificar nosso mundo de modo significativo. E a resposta realista a esta pergunta é, sem dúvida, sim. Nesse sentido, os realistas são aqueles que acreditam na possibilidade de tal transformação, e os que têm a cabeça nas nuvens são os que pensam que as coisas sempre continuarão mais ou menos como sempre foram. Por volta do ano 2000, os teóricos falavam da suposta morte da história. Segundo eles, a história, efetivamente, estava acabada, o capitalismo era a única opção a nosso alcance, e nada dramático poderia acontecer. Logo depois dois aviões se espatifaram contra o World Trade Center. Daí tivemos a suposta guerra contra o terror, depois um dos maiores colapsos da história do capitalismo, depois as primaveras árabes, a crise da imigração, etcétera.”

"O fundamentalismo é um equívoco quanto à natureza da leitura, que não existe sem a interpretação. É a outra face do pós-modernismo"

O auge do fundamentalismo está ligado, para Eagleton, a uma outra de suas obsessões: como ler ou como não ler ficção ou poesia? “O fundamentalismo, de qualquer tipo, é essencialmente um equívoco que se comete quanto à natureza da leitura. Ele imagina que o significado dos signos se fixa imutavelmente ao longo dos tempos. Mas a verdade é que um sinal cujo significado não pudesse se alterar entre um contexto e outro simplesmente não seria um signo. Os signos devem ser, por definição, portáteis: podem ser transportados de uma situação e acumular novos significados na interação com os signos que os cercam. Por isso, não pode haver leitura sem interpretação."

Link: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/08/08/internacional/1470658452_112309.html?ssm=FB_CC&fbclid=IwAR3R7I5Z0625DH9AAoyH_muQdFE5PWxKfBrz8Nn86VabKBkbDYl7d8CmXkI

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