A liberdade como "direito à obediência" - Moysés Pinto Neto
Desde que se tornou um dos núcleos da filosofia política, o conceito de liberdade sempre foi tomado como luta pela autonomia, pela ação contra os senhores, os mestres -- e, portanto, contra a servidão e a obediência.
Hoje, passamos por um processo que poderíamos chamar de "auto-imunitário" no liberalismo. Como se sabe, auto-imunidade ocorre quando o corpo mobiliza seus anticorpos contra si mesmo.
Assim como Derrida descreve em relação à democracia, quando processos democráticos poderiam levar à erosão da própria democracia -- como se estivesse inclusa na democracia a possibilidade de uma ditadura que a destrói por dentro --, também o liberalismo parece padecer do mesmo problema: a liberdade que se destrói por dentro, enquanto "liberdade para servir".
Um exemplo disso pode se ver já na Escola sem Partido, quando os pais se irresignavam contra a "doutrinação escolar". Na verdade, o que acontecia era que os filhos tomavam conhecimento de novas perspectivas e voltavam aptos a criticar aquilo que os pais gostariam de naturalizar como única visão correta.
Diante do desafio pelo choque com a esfera pública das suas crenças unilaterais, a resposta foi criar um ambiente de pânico moral que qualquer professor ou aluno sabe muito distante do que é uma sala de aula real. Afinal, sabemos que o professor não tem todo esse poder de "doutrinação", e nem o aluno é um mero receptáculo passivo que absorve qualquer coisa que é dita. A própria existência, entre estudantes, de adeptos da EsP é demonstração de que a "doutrinação" é uma fantasia.
O que, no entanto, queriam esses pais? Simples: a "liberdade" de ensinar de um modo incontestável, unilateral, sem ponto de vista contrário. Ou seja: a "liberdade para doutrinar".
Essa é a estrutura paradoxal que a ideia de liberdade carrega no âmbito da extrema direita: ela busca, antes de tudo, ser um espaço "livre" para destruir a liberdade. Não por acaso segmentos fundamentalistas religiosos ou os fanáticos de seitas de gurus demandam "liberdade".
É a "liberdade para obedecer" que ali está em jogo.
Alguém já viu, por exemplo, um discípulo do guru enunciar qualquer coisa que não seja repetição do que o mestre já disse outrora? E, quando o fazem, são imediatamente banidos da seita. Ao mesmo tempo, reivindicam a "liberdade" de estar ali para obedecer contra a "ditadura" do pensamento das escolas e universidades. Liberdade para servir, para obedecer.
Na pandemia em que vivemos, a "liberdade" é usada para reivindicar direito de não usar máscara, de não tomar vacina, enfim, de ignorar totalmente qualquer solidariedade social e agir como um idiota.
No entanto, isso se dá apenas porque os líderes assim decidiram: a revolta para "liberdade" é a simples repetição do mantra das lideranças da extrema direita -- que não gostariam de ser responsabilizadas pela condução das políticas públicas de saúde que são necessárias -- e não uma demanda efetivamente fundada em argumentos. Assim, a "liberdade" aniquila um dos seus alicerces, a vida, e sustenta seu "direito à obediência", quando a obediência é o contrário da liberdade.
Prova disso é que não há ninguém na extrema direita defendendo liberdades que estão no limite do "domínio da vida", como eutanásia e aborto, simplesmente porque seus líderes dizem que isso é errado. O que os líderes disserem será seguido e ser livre é poder obedecer aos que os líderes dizem -- "creio porque é absurdo" --, e quanto mais fé, mais liberdade.
É simples, é básico. Simples obediência, imitação, servidão. Nenhum pensamento.
Numa fórmula bem obscura, típica dos jogos argumentativos completamente falaciosos e facilmente destrutíveis com argumentos desse pessoal, contra um "autoritarismo libertário" usa-se uma "liberdade autoritária".
Fonte: https://www.facebook.com/100001733959267/posts/3817986388269122/
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