O meme dos caras dançantes do caixão não é irreverência. E daí?!

Não por coincidência, o primeiro meme massivamente disseminado no país nesses tempos de pandemia e distanciamento social foi dos bailarinos do caixão. O viral seguiu padrão de compartilhamento em progressão geométrica, com inúmeras versões. 

O roteiro básico das adaptações brasileiras é o mesmo. São situações do cotidiano que flagram momentos de produção de conflito e risco, geralmente entre marido e mulher, pais e filhos, brincadeiras perigosas, provocações a animais selvagens, enfim. Na "hora H", a reação dos personagens provocados é cortada e aparecem os caras dançando com trajes distintos, chapéus, óculos escuros e malabarismos com um caixão, enquanto seus passos e movimentos são exibidos sincronicamente a uma música eletrônica que, apesar de encaixar perfeitamente, não parece ser o que estava tocando no momento da filmagem. 

Para esclarecer, o meme insinua que a situação inicial não acabou nada bem. Vida e morte são postas em evidência na mensagem.




O Brasil se tornou terreno fértil desse meme por várias razões. Mais que isso, a cena fúnebre rompeu o campo virtual e se materializou através de manifestantes contra o distanciamento social, que chegaram a reproduzi-lo, em plena pandemia, na Av. Paulista. Segundo alguns desses manifestantes, tratou-se de um velório do governador de São Paulo. Só que, por trás dessa declaração, há um grave contexto de deboche com o esforço de autoridades em evitar as mortes causadas pela COVID 19. Há um rotundo "E daí?!".

Seria algo que deveríamos desenvolver melhor depois, mas aqui, é possível levantar, como principal razão do sucesso nacional do meme, um aspecto identitário da alma brasileira: nós não sabemos lidar com o trauma! Está em nosso DNA. E a morte é o mais incontornável trauma humano. Nossa forma de lidar com ela é tentando fazer piada. O Brasil é reconhecido na internet mundial como maior fábrica de memes da web. O que seria simplesmente uma traço da autoimagem de bem-humorados que alimentamos, assume outros contornos nesse contexto em que a humanidade enfrenta um vírus letal, que, hoje, já superou a marca de 3 milhões de infectados e 217 mil mortos. 

Vejam, não estamos afirmando uma falta de noção constitutiva ou de maldade. O brasileiro é capaz de ser sensível com o luto que resulta da tragédia: com a morte do Ayrton Senna, com os jogadores da Chapecoense na queda de um avião, com os jovens carbonizados pelo incêndio na Boate Kiss. Nosso problema, mal resolvido, é com mortes produzidas por nossas experiências sócio-históricas. Temos muita dificuldade de elaborá-las e torná-las produtoras de humanização de nossos processos civilizatórios. Notem que, predominantemente, o que há são esforços sistemáticos por esquecer e anistiar torturas e assassinatos da Ditadura Militar, tendências a relativizar milhões de pessoas pretas torturadas e escravizadas durante o período colonial, a naturalização e silenciamento de 60 mil mortes violentas no período de um só ano (o equivalente a uma Guerra do Vietnã, que durou de 1955 a 1975) nos centros urbanos, notadamente concentradas entre jovens, pretos, pobres e transformando algumas favelas em reconhecidos endereços de desova de corpos. O brasileiro comum não quer olhar, muito menos falar disso. Não nos diz respeito, não torturamos ninguém, não escravizamos ninguém, não matamos ninguém. Nós, jovens brancos, de classe média e bem educados, somos inclusive contra tudo isso que está aí...o que temos a ver com isso?! 

Dito de outra maneira: "E daí?!"

A dança nos funerais que aparece no meme foi registrada em Gana, por turistas europeus que foram completamente surpreendidos por aquele ritual de sepultamento. Vale dizer que esta coreografia, com mais malabarismos e performances, foi uma ressignificação 2.0  daquilo que é enraizado culturalmente no espírito e cosmovisão desses povos de África. Trata-se de uma cerimônia tradicional não apenas em Gana, mas em várias regiões do continente africano, onde diferentes tipos de rituais celebram antepassados e, portanto, consideram que alegrar-se nessa hora é um dispositivo de legitimação e reverência à vida e não à morte. Assim, para nossos padrões, o clima se assemelha muito mais a um batismo do que um velório. Causa fascínio e estranhamento, que são os ingredientes especiais deste meme. 

As danças fúnebres dos povos de África não são i-rreverência. É justamente o contrário. Ali há a superlativização da reverência, codificada pela alegria. 

À morte de mais de 5000 brasileiros vitimados por um vírus letal, não cabe a piada do coveiro. Muito menos o deboche com a recusa do milagre. Cabe reverência. 

Cabe, minimamente, respeito. 

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