Covid-19 pode trazer a política de volta ao mundo real, diz filósofo

Por Moysés Pinto Neto 

Dizemos que uma pessoa está "no mundo das nuvens" quando está muito distraída, em geral pensando em coisas desligadas do momento real em que está vivendo.

Curiosamente, a nuvem tornou-se uma das principais imagens do nosso tempo. Livros como "Dentro do Nevoeiro", de Guilherme Wisnik, e "A Nova Idade das Trevas", de James Bridle, pensam a experiência do contemporâneo a partir da experiência da nuvem digital.

Estamos permanentemente conectados em nuvens: Facebook, Google, Youtube, Netflix, Twitter, Instagram. E estar vivendo nesse mundo é também, de certa forma, abandonar o mundo da experiência vivida em detrimento desse outro ambiente virtual das plataformas.

Não se trata de simplesmente afirmar que as coisas se opõem: mundo falso, mundo verdadeiro. São dois ambientes. A diferença é que, do lado de cá, das nuvens, as regras quem faz são as próprias plataformas. Por isso, vivemos a sensação do nevoeiro: na mesma medida em que tudo parece transparente, o código que torna as coisas visíveis é, ele próprio, invisível para nós.

Se aplicarmos esse raciocínio à realidade política brasileira, é possível dizer que Bolsonaro aprendeu bem esse jogo. Seu discurso volta e meia não tem referência material. Ele simplesmente produz o jogo das plataformas, em busca de likes e apoios da sua dedicada claque virtual.

Os trolls que o seguem não estão interessados na velha correspondência entre mundo real e a afirmação dita. O que importa é basicamente a performance. O conteúdo é irrelevante: no final, tudo pode ser só brincadeira mesmo. Como, aliás, funcionam as plataformas: agnósticas em relação ao conteúdo, basicamente preocupadas em nos manter conectados prendendo nossa atenção.

Bolsonaro sabe jogar o jogo, tornando-se o foco da atenção permanentemente. Presidente e humorista confundem-se, são a mesma coisa. Civilidade, liturgia do cargo, tudo isso é a "velha política" das instituições. Aqui, o que importa é performance, espetáculo e mobilização online.

Contra o "establishment", contra o "sistema". Não foi essa a mensagem recente quando confrontou os jornalistas com um humorista o interpretando ao mesmo tempo?

O momento em que o chefe de Estado presta contas ao cidadão normalmente era mediado pelo discurso sério e pesado, denso, em que cada palavra tem um peso gigante. Agora, que peso tem uma palavra? Não importa. Tudo é leve, meio piada, meio sério – a tática é nunca permitir ao interlocutor ter certeza sobre a natureza da performance.

É nesse mundo das nuvens que nossa política tem se passado. O Diário Oficial e a prestação de contas pelos velhos mediadores da imprensa tradicional são trocados pelo Twitter e lives no Facebook.

Mas eis que surge um intrometido para perturbar a festa: o Covid-19. Lembrando sua total indiferença às questões humanas, às performances e aos cargos, o vírus simplesmente invadiu a redoma de proteção presidencial e passou a contaminar sua equipe. O próprio presidente passou a ter suspeita.

A famosa imagem dos "dois corpos do rei", em que um deles é sacralizado e distinto do corpo material – e hoje está nos ambientes das plataformas a partir dos avatares presidenciais – , vê-se forçada a responder diante da vulnerabilidade do corpo físico.

O que parecia ser blindado contra o mundo real, deslocado que estava para o nevoeiro das plataformas, passa agora a se tornar frágil, passível de ser atingido por uma força indiferente a quem está atingindo, ao cargo, ao discurso, aos likes, às hashtags.

Um discurso que se associa – ou pelo menos não se separa – a noções bizarras como o terraplanismo acaba sendo perturbado pela materialidade do mundo. De repente, um fenômeno não humano acorda o sujeito que estava no mundo das nuvens para a vida real.

Só o tempo dirá os efeitos que isso produzirá, mas é impossível não sentir o golpe. O Covid-19 é um choque de realidade que, como corpo invasor, traumatiza quem o sofre, produzindo uma desestabilização de toda ordem – ou mesmo da maneira como estava sendo gerido o caos, para ser mais específico – que antes estava em vigor. Nada poderá continuar igual ao que estava.

O Covid-19 é um lembrete de que o mundo real existe e, por mais que a hiperconectividade tenha nos levado ao mundo das nuvens, ainda temos um corpo e por isso somos vulneráveis.

* Moysés Pinto Neto é doutor em Filosofia pela PUC-RS e professor da Universidade Luterana do Brasil.

Do UOL, 21/03/2020

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