Entrevista de César Kuzma a Mauro Lopes sobre o Ano do Laicato

César Kuzma e filhos
Sem dúvida, uma das melhores reflexões sobre Leigos e Leigas na Igreja e na Sociedade estão nas perguntas e respostas dessa entrevista de César Kuzma, doutor em teologia e leigo católico, concedida ao Blog  Caminho Pra Casa, de Mauro Lopes junto ao padre Luís Miguel Modino, pároco na Diocese de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. 

Destaco alguns trechos mais chamativos e, no final, o link com a entrevista completa. Vale a pena ler tudo.



SOBRE CLERICALISMO
  • De modo muito seguro e direto, posso dizer que o clericalismo é uma doença que impede a Igreja de ser serviço e, com isso, inibe as demais vocações, sobretudo os leigos, de assumirem o seu papel, a sua missão dentro do corpo eclesial, e também na sociedade.
  • O clericalismo traz e vive de uma imagem de Igreja que se quer garantir por si mesma, sem abertura ao novo e que busca sempre o poder, que quer estar acima, que vive “à parte” e agarra-se nas estruturas, na dureza das tradições, no enrijecimento da doutrina, na dominação de uma letra sem espírito e num autoritarismo eclesiástico/hierárquico doente. Trata-se de uma agressão à ministerialidade, é importante dizer isso, pois não abre espaço a outros/outras e fecha-se às novas questões, notadamente urgentes para o nosso tempo.
  • A partir de então, a Igreja não é mais definida pelo clero, pela hierarquia, mas pela “totalidade” dos fiéis que compõem o povo de Deus. Por esta razão, alguns autores dizem que a eclesiologia do Concílio deve ser vista pela ótica do Povo de Deus, pois é a grande novidade, uma chave de leitura de primeira grandeza (J. B. Libanio). Logo, é um avanço, porque valorizou e ampliou a compreensão de ministerialidade da Igreja. Resgata a ideia do sacerdócio comum de todos os fiéis, colocando o sacerdócio hierárquico, que tem a sua importância, a serviço dos fiéis e não o contrário. Podemos notar que o Concílio quer romper com toda presunção de uma super-vocação e de um novo clericalismo, pelo menos em teoria.
IGREJA: SOCIEDADE PERFEITA OU COMUNIDADE DE VIDA?
  • A encíclica Vehementer nos, de Pio X, um dos ícones dos restauracionistas, na qual ele afirma claramente que há duas categorias de pessoas na Igreja, sendo os leigos e leigas um grupo de segunda categoria. Reproduzo e amplio a citação que está no seu livro: ele definiu a Igreja em 1906 como “o Corpo místico de Jesus constituído de Pastores e Doutores, uma sociedade de homens em que se encontram líderes que têm poderes plenos e perfeitos para governar, ensinar e julgar, o que resulta que a Igreja é por sua natureza uma sociedade inigualável, uma sociedade formada por duas categorias de pessoas: os Pastores e o Rebanho”. Para Pio X, “estas categorias são claramente distintas entre si, e somente no corpo pastoral residem o direito e a autoridade necessários para promover e dirigir todos os membros de acordo com os objetivos da sociedade; quanto à multidão, ele não tem outro dever que o de se deixar guiar e seguir, como um dócil rebanho, os seus Pastores”.
  • Por isso é importante o sentimento de communio, onde Cristo está no centro e ele garante a dignidade a todos (cf. LG n. 32), a partir do batismo e da experiência salvífica/libertadora que temos com ele, na história, mesmo com toda a sua provisoriedade.
  • Assim, ver a Igreja como uma sociedade perfeita é projetar nela uma imagem platônica, longe da realidade, iludida por uma perfeição que só é real em promessa, em esperança, numa destinação escatológica. Qualquer tentativa de se criar neste mundo, neste tempo e nesta história, uma imagem de “Igreja triunfante” ou de “sociedade perfeita”, como eles chamam, contraria a proposta eclesiológica apresentada pelo Vaticano II, que a terá sempre como “peregrina” (cf. LG n. 48). Entender a Igreja como peregrina é situá-la no caminho apresentado por Jesus e nas exigências de sua práxis. Por isso, a importância de ver a Igreja como uma comunidade sempre viva, aberta ao novo que vem, garante uma perspectiva nova.
  • Isto é bem evidente na Evangelii Gaudium, quando Francisco nos diz que a história da Igreja se faz gloriosa não por conta de projetos expansionistas e linhas bem traçadas, mas pela sua condição peregrina e militante na história, nos sacrifícios e nas esperanças, nas lutas diárias e na constância do trabalho fatigoso (cf. EG n. 96).
CRISTÃOS DE PRIMEIRA E SEGUNDA CATEGORIA?
  • Não havia porque a Igreja estava nas margens da história, nas periferias, ela era perseguida e a grande preocupação era o anúncio do ressuscitado, como uma força capaz de mudar o modo de viver e compreender as coisas. Dava-se a vida por isso. O confronto era com o mundo, pois eram perseguidos e a unidade deles (“um só coração e uma só alma” – At 4,32) era um modo não agressivo e profético de se enfrentar o mundo, oferecendo outro espaço e outro tempo, até com a própria vida. Fazer ali a “memória do Senhor” (Eucaristia) tinha mais do que uma intenção litúrgica ou celebrativa (não era assim), mas uma memória escatológica que dava força e razões às esperanças.
  • Vemos isso pela história da Igreja e pela maneira como ela foi se construindo até os dias de hoje. A separação entre os que sabem e os que não sabem, que foi o que deu toda origem ao modo depreciativo que existe no termo leigo, fazendo uma separação de classes e posições. A manutenção de um laicato passivo, que apenas recebe e não questiona. A declaração de Pio X e sua incidência até hoje, a falta de espaços e a resistência de uma libertação dos leigos para o alvorecer de uma missão fortalecida, para fora dos muros eclesiásticos.
  • Eu tenho comigo a tese de que os leigos devem se afastar deste modelo estrutural e buscar novos caminhos, novas maneiras de viver a fé, dentro do chamado que é próprio da sua vocação, que é o mundo secular e as grandes causas da humanidade. Aqui está a vocação e a missão dos leigos! Ali devem ser sal e luz. Sujeitos da história. É onde os leigos, como Igreja que são, podem oferecer o seu testemunho e o seu serviço concreto. Observo que as ações de Francisco também vão por aí.
  • O cristianismo tem algo a dizer ao mundo e este “algo” não se limita a esfera do sagrado, mas é carregado de vida, justiça e esperança, capaz de propor um novo ethos, com um jeito leve e livre para dizer as coisas. Hoje, as estruturas eclesiais nos impedem, pois estão centralizadas em outro tipo de ministério e numa visão eclesiológica fechada, e mesmo a prática sacramental, do modo como é apresentada, favorece este desequilíbrio e a falta de protagonismo, pois o leigo é aquele que sempre recebe e que sempre responde de modo passivo ou submisso. Penso que é urgente resgatar a teologia do batismo como inserção da pessoa em Cristo, onde passamos a viver como novas criaturas no mundo onde estamos, diante das grandes questões e urgências, abertos ao novo e no seguimento sincero do homem de Nazaré (que sempre nos interpela), fazendo da sua práxis do Reino a nossa práxis de vida e de fé.
LEIGOS X CLERO
  • Se na resposta da Igreja antiga precisou se falar que não há escravos ou livres, homens ou mulheres, mas todos são um em Cristo Jesus, deveríamos trazer esta máxima para hoje, como uma definição basilar, para que não haja mais clero ou leigos, mas para que todos possamos ser uma só coisa nele. Pode parecer utopia, mas ela tem a sua importância, pois nos faz olhar para frente e alimenta o caminhar da esperança. É possível mudar. É necessário. O teólogo J. B. Metz diz que o Evangelho tem memórias subversivas. É verdade, e elas podem nos libertar.
  • Uma sociedade aberta exige leigos também abertos, capazes de dialogar e responder de modo autêntico e livre às exigências da fé e as interrogações que chegam à fé. Se a compreensão de ministério tem sempre como referência o dado sagrado ou a colaboração e cooperação com o ministério ordenado, os leigos jamais vão avançar para algo diferente. Poderíamos perguntar: como é ser leigo, sujeito eclesial, numa Igreja clericalizada? Impossível! É necessário romper isso!
  • Na Evangelii Gaudium Francisco nos pede ousadia, pede um arriscar, um primeirear, uma saída. Não se sai com a catedral nas costas, mas se sai de modo kenótico, despojando-se de tudo o que nos prende e limita o nosso ser e estar, e ainda aberto às novidades que a missão nos provoca. Seguindo um panorama bíblico, digo que os leigos devem ter o mesmo sentimento de Cristo Jesus (cf. Fl 2,5), aí se encontra a saída, e é desta forma que devem se abrir para um novo caminho e um novo chamado à espiritualidade, uma nova forma de ser e estar no mundo. Um novo modo de ser Igreja.
  • Fala-se muito em mudar mentalidades para mudar estruturas, contudo, se não mudarmos algumas estruturas não conseguiremos mudar certas mentalidades. É um fato, não?
APARECIDA
  • Francisco resgata a Conferência de Aparecida e tenta levar a dimensão “discípulo missionário” para toda a Igreja. Resgatar a Conferência de Aparecida é resgatar aspectos importantes do Vaticano II e da tradição da Igreja latino-americana. Francisco faz isso com muita naturalidade, é uma práxis que está com ele. Nesta visão de Igreja “todos” fazem parte, “todos” são responsáveis, “todos” são chamados e “todos” são sujeitos da fé que professam. Diante disso, vejo Francisco como um Papa que cria processos. Isso é importante: processos. Ele sabe que não mudará a Igreja e que as reformas são lentas, que há muita resistência, mas está se criando processos e se abrindo a mesma para outras visões. Eu tenho esperança nisso!
O QUE É SER LEIGO? JESUS ERA LEIGO?
  • Eu gosto desta afirmação, e a uso com frequência em meus textos, palestras e conferências, embora saiba que alguns bispos não gostam desta colocação, e até já me falaram isso… Contudo, é evidente que o termo “leigo” não existia no tempo de Jesus, o termo vem com o surgimento da comunidade cristã, sendo empregado pela primeira vez para distinguir o simples fiel daqueles que presidiam o culto, e isso no final do primeiro século. Em grego, Laikós vem de Laós, aquele que pertence ao Povo (neste caso, Laós de Deus, Povo escolhido de Deus). 
  • No entanto, ao reforçar ou “forçar” esta categoria em Jesus tenho a intenção de demonstrar que Jesus não era membro de nenhuma hierarquia religiosa e nem mesmo de grupos de elite. Ele era alguém do povo e sujeito de seu tempo. Pobre com os pobres, ele vivia nas ruas e nas praças, frequentava casas e lugares alheios aos padrões religiosos. 
  • A religião de seu tempo (e alguns de seus líderes) estava corrompida pelo poder, então Jesus não vê na religião um caminho, o que não anula a sua religiosidade/espiritualidade, mas ele a destina a outros horizontes e a outras pessoas, que a religião da época ignorava ou não alcançava. Os títulos que trazem Jesus como Senhor, Rei e Sumo Sacerdote são expressões pós-pascais, isto é, construídas pela comunidade primitiva a partir da experiência da ressurreição. Historicamente, ele era um homem comum de seu tempo, um sujeito. 
  • Perceber Jesus como leigo é resgatar a laicidade do Evangelho, isto é, a relação de Jesus com as aflições, buscas, tristezas e esperanças daquele povo. Ele era alguém atento e preocupado, deixando-se tocar pela ternura da vida, desprendendo-se a um serviço que restitui e chama a uma vida diferente. Acho que isso diz muito para nós hoje, para o nosso ser cristão, e a melhor maneira de ser leigo ou leiga dentro deste nosso contexto é se espelhar na proposta e práxis de Jesus.
IGREJA "EM SAÍDA"
  • Acredito seriamente que o futuro da Igreja só pode ser pensado com esta adesão e com esta abertura e inclusão. Sem a ação dos leigos não há uma ação de Igreja em saída. Esta estrutura que nos cerca está carregada e dominada por vícios que nos impedem de sair. Veja o clericalismo e a dificuldade que temos de sair dele. As pessoas parecem estar em outro mundo, estranho, não? Mesmo quando se tenta justificar uma inclusão dos leigos, fazem isso dizendo que ele deve estar com a Igreja, como se ele não fosse parte, ou insistem na sua presença com a comunidade para o acesso aos sacramentos e a comunhão eclesial, mas que na verdade se traduz numa dominação da vocação, ou subordinação/infantilização, pois ao insistirem na Eucaristia e na Reconciliação, por exemplo, coloca-se o leigo submisso a outro e com pouca liberdade de agir e de fazer manifestar a sua autonomia de fé. 
  • Não estou aqui negando a questão sacramental da Igreja e a eficácia salvífica da Eucaristia e o que ela representa, quero deixar isso bem claro, nem a justa tarefa do ministério ordenado no exercício dos mesmos. Mas gostaria de ir mais além e penso que a vocação/missão laical não pode se resumir neste ponto, pois a graça batismal deve ser vivida na vida, na história, no chamado, onde somos provocados a dar razões de nossa fé e de nossa esperança. É uma experiência que deve nos fortalecer em toda uma vida, em cada passo, em cada direção; é uma opção, uma decisão por Cristo e pelo seu Reino. A Eucaristia deve ser uma comunhão com um Cristo que nos encoraje num seguimento e nos faça olhar o caminho do seu Reino e na adesão de sua cruz. E isto está além de uma celebração. Isso traz a liturgia para a vida (como Jesus viveu!) e é o que torna cristã a ação dos leigos no mundo, onde são sal e luz, força e esperança, como tentei defender no livro.
DOCUMENTO 105 E ANO DO LAICATO
  • Com a CNBB e com o CNLB pensou-se o Ano do Laicato, que tem início agora e vai até novembro de 2018. É uma chamada à reflexão e à ação, com iniciativas que favoreçam e fortaleçam os leigos como sujeitos na Igreja e na sociedade, resultado do Documento n. 105 (que trata dos leigos como sujeitos/2016), primeiramente respeitando a sua vocação, e depois, permitindo o que lhes é de direito: a formação, a atuação, a organização, a autonomia e a representatividade eclesial e social. Insisto neste último ponto, na representatividade social, pois em alguns lugares temos leigos sendo cerceados e perseguidos pela sua posição política, pelo seu engajamento e por suas lutas por direitos. Isso é grave. Jogando com as palavras, posso dizer que o leigo tem “direito de ter dever” e faz parte de seu dever, de sua vocação/missão a sua atuação na sociedade, também o seu envolvimento político. Eu mesmo sofri isso na pele.
  • Ser leigo, para mim, é saber dizer: “Mestre, onde moras?”, e saber ouvir: “vem e vê!”, e para isso, buscar o discernimento, no Espírito que nos fortalece.
Entrevista completa aqui: Blog Caminho Pra Casa

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