O dia em que quase liderei uma (micro) revolução
Essa semana voltei, fim de tarde, pela dita ruazinha. Até chegar à metade dela (justamente quando já não dá pra fazer manobra desistindo da rota) ia tudo bem. Mas já havia três carros estacionados, obrigando a mão dupla se alternar em mão única em trechos já apertados. Pois bem. Depois de um Toyota Corolla prata, que ia na minha frente, dirigido por uma jovem senhora bem maquiada, passei o primeiro trecho e aguardava a vez, no segundo aperto de mão única. Só que havia um impasse: um morador aguardava portão abrir pra entrar num condomínio da ruazinha, 10 metros adiante. Parado, observei chegarem uns 4 carros atrás de mim, mais uns 5 vindo no contrafluxo, atrás de um Mitsubishi ASX branco novíssimo, pilotado por um senhor grisalho, bem cabeludo. Pensei, logo: "vai dar merda". Já fiquei preso ali diversas vezes, pela mesma razão. Os caras encostam atrás e não se dão conta do espaço estreito que temos que resguardar pra não travar o fluxo. Mas não tinha jeito. Os dez carros passando pela ruazinha tinham que esperar o cara entrar no condomínio dele. Só então pra conseguir seguir. Ou não.
O universo conspirou bem. Apesar de o moço não ter demorado mais que 1 minuto pra entrar no condomínio, chegaram mais uns 10 carros, dos dois lados, pra travar a bagaça toda. Dito e feito. Na hora que o carro entrou, a senhora bem maquiada da minha frente tomou um espaço, o senhor grisalho vindo de lá tomou outro e...bingo! Ninguém passava. E aqui começa o essencial, que gestou esse texto. Tanto a senhora bem maquiada quanto o senhor grisalho cabeludo estavam, ambos, muito bem acomodados em seus carros novos e confortáveis. Imagino a música clássica tocando em seus kits live tech nos painéis luminosos à sua frente, sob agradáveis 22 graus de temperatura de eficientes condicionadores de ar, quem sabe exalando fragrância morango silvestre. Só assim pra justificar aquela cena que vi. Ambos tentaram passar primeiro e desistiram ao ver que colocariam seus belos carros em risco no trecho de aperto. Pra piorar, um fez de conta que a culpa era do outro, encostaram seus cotovelos na porta de seus automóveis e, sincronicamente, inclinaram a cabeça sobre suas mãos, com cara de "olha o que você fez, agora se vire sua mizéra". Parecia ensaiado. Quando eu vi aquela coreografia, antes de ficar irritado, ri. Não acreditava que eles iam ficar ali, parados daquele jeito. Ficaram.
Passaram-se segundos. Os motoristas dos dois lados, percebendo que ninguém se movia, começaram a buzinar. Carro de polícia acionou sirene vindo de lá longe, moradores passavam na calçada entre rindo e balançando negativamente a cabeça com a cena. Nesse instante, viajei. Me imaginei subindo num drone e visualizando as duas filas de carro paradas por causa de 30 cm de impasse. Lembrei de Hannah Arendt (sim, foi uma viagem) tratando do mundo privado e do mundo público, os carros privados e a rua pública, por assim dizer. E que se não ocorresse o rompimento dos valores da esfera privada em favor do bem público, acabaríamos ficando ali por horas, quem sabe, dramaticamente, organizaríamos ali mesmo nossa ceia de natal. Perguntei a mim mesmo: mas quem vai destravar essa bagaça? Respondi para myself: Eu...eu?! Como assim, "eu"?! Sim, EU. Olhei para meu sonzinho positron piscando em púrpura e tocando Something Just Like This do Coldplay & The Chainsmokers, baixei o som, (não me perguntem o por quê) e, sem apagar faróis ou desligar o carro, fiz o gesto que viria a reequilibrar prótons, nêutrons e elétrons daquela cena de drone: abri a porta do carro e desci.
Pisei fora do meu golzinho 2011 prata quitado decidido. Crachá da firma em volta do pescoço, camisa social branca, mangas dobradas até o cotovelo, arregacei-as mais ainda, deixei a porta aberta e fui até os 30 cm de impasse. Nem a senhora bem maquiada do Corolla, nem o senhor grisalho cabeludo do ASX baixaram vidro. Comecei a gesticular e coloquei as palmas da mão pra cima com cotovelos a 60 graus. "E aí?!" Ambos baixaram os vidros ao-mesmo-tempo (eles tinham ensaiado coreografia, só pode). Pedi pro senhor ir pra trás, pra direita, pra frente. Pronto. Livrei 30 cm, mas estava apertado. Chamei a senhora pra vir, devagarinho, olhando o seu lado lateral, que eu olhava o do carona. Ufa, passou. Assim que ela passou, a fila de lá começou andar. Viva! Vitória! Durante uns 2 segundos de abdução me senti um super-cidadão aristotélico, treinado para o bem comum, amenizando as angústias da dura rotina de meus coirmãos motoristas, encurtando o tempo de espera de cidadãos de bem ansiosos pelo calor do abraço rodopiado de seus cônjuges e filhos à porta de casa. Foi quando um "bi-bi" me trouxe de volta à frequência da ruazinha. Era uma buzinada gentil do moço do carro que vinha atrás de mim e aguardava eu voltar pro meu possante, pra fazer fluir nossa fila. Sob olhares e aplausos imaginários, adentrei meu Wolksvagem, aumentei o som de Paradinha, passei primeira marcha e segui, exultante.
Não sei quanto tempo demorou tudo. Só sei que adentrei ali ainda céu claro e, quando cantava "a paradinha-ah-ah-ah-ah", já estava escuro. Trinta metros depois, no final da ruazinha, um caminhão da Coca-Cola começava a descarregar caixas de cerveja para dentro de um boteco. E ocupava a metade de lá da rua, irregularmente.
Trinta minutos depois, puxei o freio de mão no estacionamento de casa com a sensação de quase ter liderado uma micro-revolução.
Fomos sabotados por um caminhão do establishment.
O sistema é f...
Na raça e na paz d'Ele,
J. Braga
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