Como faz falta o MERTHIOLATE
Que eu me lembre, 5 anos de idade, em Santarém. Joelho ralado no asfalto novo da rua numa queda de bicicleta. Chorando, sou levado pra dentro de casa por mamãe. Sentou-se, abriu uma caixa e tirou dela um frasco cor marrom. Abrindo-o, uma pequena pá de plástico, grudada no interior da tampa, surgiu com uma quantidade do produto que tinha uma cor avermelhada.
Delicadamente mamãe levou aquela pazinha diretamente para a ferida.
- AAAAAAAAAiiiiiiiiii!
O grito que dei foi tão alto que o frasco saltou da mão de mamãe derramando todo líquido por minha perna. Chorando disse:
- Mãe este negócio tá ardeeeeendoooo! Tá queimando! Tá queimando...
Ela reagiu carinhosamente...
- Pode deixar que eu sopro, filho! Fuuuu, fuuuu...
O alívio acontecia lentamente e apesar da perna estar completamente manchada pelo produto derramado, sentia conforto a cada sopro que recebia de mamãe.
Muitos sopros foram necessários durante minha infância e mesmo depois que cresci, o MERTHIOLATE continuou a arder. Somente as reações mudaram. Os gritos de dor e os sopros carinhosos de mamãe foram substituídos por caretas e sopros que eu mesmo dava em meus ferimentos.
Há pouco tempo soube que alteraram a fórmula do produto. Agora, o MERTHIOLATE não arde mais e é completamente incolor.
Percebi esta mudança em uma ocasião, quando meu filho mais velho se machucou, também andando de bicicleta. Quando o menino chegou mostrando o ferimento, percebi que ele não tinha receio da aplicação do produto, aliás, dispensou qualquer pedido de ajuda, apenas lavou o ferimento e perguntou onde estava o MERTHIOLATE.
Neste momento, o orgulho inicial provocado pela “autonomia” do menino, deu lugar a um sentimento de perda de algo que havia sido muito importante para mim na infância – aquela carinhosa frase dita por mamãe:
- Pode deixar que eu sopro, filho!
Lembrei-me de todos os tombos (os principais, pelo menos), das aplicações do MERTHIOLATE e de como estas “dores” foram pedagógicas em minha formação e escolhas.
Percebi que as "facilidades" dos dias atuais estão protegendo as crianças de “dores” importantes, e isso aumenta a responsabilidade na formação dos valores e do caráter destas crianças.
Criança. Uma expressão bem aportuguesada. Enriquecida.
Quando morei na Colômbia, percebi que a tradução direta dessa palavra - "crianza" - apesar de existente no castelhano, não era usual na fala das pessoas. Para eles crianças eram "los niños". A palavra traduzida era compreendida como "criação". Daí podermos associar criança-criação-criar. A capacidade de "criar seu próprio universo" é característico das crianças.
Elas não precisam (nem sabem) viver o mundo dos outros, pautadas pela expectativa alheia. Não. Como definem as Diretrizes Curriculares da Educação Infantil (p.12), elas constroem sua identidade (e seu mundo) pessoal e coletivo na brincadeira, imaginação, fantasia, observação, experimentação, narração, enfim. Elas questionam e constroem os sentidos sobre a natureza e sociedade, produzindo cultura.
E como cultura não se cria no etéreo, mas no concreto, fazem falta algumas ferramentas que enriqueçam o universo próprio das infâncias de hoje com o tempero pedagógico da dor que serve pra nos fazer melhorar. Não existem muitas ferramentas.
Como faz falta o MERTHIOLATE.
Na raça e na paz Dele,
J. Braga.
Muito bom o texto, bastante reflexivo sobre filhos, como cria-los, como educa-los... bjos nos 4!
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