Antipetismo - Rafael Mantovani

Em 1984, o antropólogo Clifford Geertz escreveu o texto Anti anti-relativismo, com o propósito de criticar os críticos do relativismo. Geertz notou a má formulação do conceito de “relativismo” por parte dos seus adversários para atacá-lo, devido ao medo que tinham (e têm) da diversidade que havia (e há) lá fora. O ataque era resultado do desejo de uma espécie de retorno a uma moral transcendente que pudesse dizer o que é certo e o que é errado. Esses críticos do relativismo diziam que os relativistas defendiam uma ideia ao estilo “tudo pode”. Geertz, então, esclareceu que os chamados relativistas só queriam que os antropólogos se preocupassem com o “provincianismo”, dizendo que não deveriam ser provincianos, não deveriam fazer uma análise do outro pautada nos valores próprios, ou seja, provindos da própria sociedade do investigador. Se caso fosse para julgar a outra sociedade, não haveria motivo para existir antropologia.

A analogia do título do texto foi inspirada no “antianticomunismo”, movimento formado por pessoas que não acreditavam na visão dominante nos Estados Unidos da época da guerra fria de que o “perigo vermelho” era o fato primordial da vida política. Mas o grupo não era comunista, apesar de diversas vezes ser associado aos bolcheviques. O valor do antianticomunismo foi ter criticado McCarthy, não para que pudesse ser implantado o comunismo (coisa em que os antianticomunistas não acreditavam), mas simplesmente porque a perseguição aos comunistas não era salutar à sociedade norte-americana e tampouco condizia com a liberdade de pensamento e expressão. Da mesma forma, Geertz se viu na obrigação ética (homem de opiniões firmes que era) de criticar aqueles que afirmavam erroneamente que, para os relativistas, não havia ética, não havia valores. Dizia Geertz que tentar trazer de volta ideias como fato bruto, lei natural, verdade necessária, beleza transcendental não poderia ser, de forma alguma, salutar para a antropologia. Afinal, isso só seria possível se a moral (que provém do observador) fosse posta acima da (diferente) cultura analisada. E brilhantemente termina dizendo que “se quiséssemos verdades caseiras, deveríamos ter ficado em casa”.

O que deve ser primeiramente destacado no raciocínio de Geertz é o quanto uma crítica a determinada coisa pode dizer pouco a respeito da própria coisa e muito a respeito dos que fazem a crítica. Nesse caso, primeiramente, o horror ao diferente. Em segundo, o preconceito ao diferente. Em terceiro lugar, a certeza da possibilidade de um conhecimento moral e objetivamente construído: uma crença de pessoas que tentam ignorar que essa objetividade e moralidade provém, necessariamente, dos valores vindos “de casa”. Nesses três pontos, o antipetismo se assemelha ao antirrelativismo. Comecemos pelo terceiro ponto e desenrolemos em direção ao primeiro.

O “conhecimento objetivo” do antipetista se divide em duas partes. A primeira é a certeza de que a economia é uma ciência neutra e o mercado é um ser independente da sociedade e dos interesses particulares dos grupos sociais. A segunda é que as diferenças sociais são, na verdade, naturais. Vamos por partes.

Para explicar o primeiro ponto do conhecimento objetivo antipetista, pode-se evocar Carlos Alberto Sardenberg que, certa vez, disse que o governo “errou” ao baixar a taxa de juros. Note o leitor que o governo “errou”. Tratou-se de erro, de análise mal feita, não de escolha política. Ora, a taxa de juros controla o aquecimento da economia e índice de inflação, portanto, a escolha por aumentá-la ou diminuí-la se trata, na realidade, de uma escolha muito bem definida, traçada em busca do resultado que o governo pretende alcançar. É claro que há atitudes políticas que se mostram erradas, desastradas, mas não é disso que se trata aqui. Há uma forma de expor as análises econômicas por parte do antipetista que tende a dar a entender que haveria uma neutralidade na escolha, uma neutralidade que não é captada pelo grupo político adversário por ser incompetente. A ideia de que o governo do PT “erra” provém de uma tentativa muito clara de mascaramento do descontentamento pelo fato de que este governo específico não tem privilegiado a classe da qual ele, jornalista, é porta-voz. Tal mascaramento é conseguido pelo convencimento da “neutralidade” da economia e da “naturalidade” do mercado. Para que o mercado fique “melhor para todos”, é necessário ver atentamente os dados e decidir cientificamente. “Os dados mostram”. “Os números não mentem”. Claro que não mentem, os números nem falar falam. Quem fala é o analista. A naturalidade do mercado e a neutralidade da economia são a tentativa de transformar o que é escolha político-econômica em uma ação objetivamente certa ou errada de acordo com um único raciocínio possível. É como um motorista que quisesse chegar a São Paulo e pegasse o caminho do meio, quando, na verdade, precisaria ter pegado à direita. Para se chegar a São Paulo, portanto, era necessário ele ter pegado à direita, mas o motorista se equivocou pegando a linha central e não se vai mais chegar ao destino desejado. Entretanto, nas ciências humanas – conjunto de saberes do qual a economia política também é parte – as coisas não são tão inequívocas assim. As escolhas podem tanto ser guiadas por erros como por clara intencionalidade. A clara intencionalidade de uma ação político-econômica, quando não beneficia a classe a que o antipetista faz parte, ele a encara como erro, como ingenuidade. Só que tentar definir-se a si mesmo como neutro é uma atitude que carrega muita intencionalidade guiada por interesses específicos.

A segunda parte da neutralidade e objetividade do conhecimento antipetista começa ainda com um chavão econômico mal formulado, desemboca em uma sociologia muito ruim e tem como conclusão uma proposta jurídica calhorda. Começa “constatando” duas coisas. A primeira é que há pobres e ricos no mundo apesar de todos os indivíduos, diz ele, estarem em condições iguais de competição, asseguradas também por regras jurídicas (“teoria” econômica). A segunda “constatação”, obscuramente vinculada à primeira, é que a classe pobre teria uma predisposição ao crime (“teoria” sociológica). E, se há muito crime, deveria haver mais punição – conclui (sugestão aos magistrados de direito).

De acordo com a vontade antipetista de ressuscitar a legalidade do suplício, a punição é o melhor remédio para os índices “alarmantes” de criminalidade. Portanto, que reduzamos a maioridade penal e, no limite, restabeleçamos entre nós a pena de morte para dar a marcha ré mais imponente da história. Ignora-se que os crimes mais combatidos são os cometidos por uma classe específica (a pobre), e que, sendo a mais punida, é a que tem os crimes que mais comete (furtos e pequenos roubos) potencializados. E são potencializados esses crimes não pelo fato de serem os típicos da classe x ou y, mas pela própria punição que marca aquele indivíduo como desviante e, exatamente por esse fato, passa a ter apenas a “carreira” desviante como opção social [Para mais detalhes a repeito, ver o clássico e claríssimo texto de Howard Becker, Outsiders]. Diferentemente disso, o raciocínio de quem defende a redução da maioridade penal e a pena de morte se pauta na ideia de que “esse aí não tem jeito, não”. Esse aí é naturalmente ruim.

Séculos atrás, a escravidão era o sistema econômico do Brasil. E ela era também justificada racionalmente. Obviamente, primeiro veio a escravidão, depois a sua justificativa; entretanto, ela não era uma justificativa consequencialista, ou seja, “precisamos da escravidão, portanto, mantenhamo-la”. Não. Ela tinha uma justificativa deontológica: deveria haver escravidão para moralizar o negro. A escravidão fornecia “panis, et disciplina, et opus servo”, ou seja, pão, disciplina e trabalho para o servo – os elementos necessários para o caminho da virtude. E a punição era o elemento essencial para a educação escravocrata, afinal, era o único “incentivo” ao trabalho, pois ele não era remunerado e nem trazia nenhuma satisfação pessoal. Restava a chibata como argumento.

Em um dos relatórios de 1835 a respeito do estado da prisão da cidade de São Paulo (coletados por Nuto Sant’Anna no volume II dos Documentos históricos), o relator se indignava com o fato de estarem presos brancos e negros, misturados. Os brancos que, por desgraça, haviam cometido algum crime seriam muito mais sensíveis à prisão do que pretos, de natureza preguiçosa, indolentes e sem princípios de decência. Os pretos encontrariam na punição não um mal, mas antes, uma benção. Dessa forma, os brancos deveriam ser menos punidos pelos seus crimes; já os pretos, mais. Curiosamente, hoje acontece o mesmo: a prisão está repleta de pobres que, curiosamente, são de maioria “nãobranca”. Ao notar a maioria sócio-racialmente selecionada pelo sistema judiciário e policial no momento de encarcerar, o preconceito mal escondido quase aflora ao dar a entender que os princípios da criminologia lombrosiana estavam certos: haveria, sim, predisposição biológica ao “crime”. E “que se puna mais” – é o raciocínio. É o desejo de chicote que o antipetista tem, da chibata que ele nunca teve em mãos, mas mesmo assim sente muita saudade. Bons tempos devem ter sido aqueles de quando, apesar de em lei não se poderem matar os negros, na prática, sim.

E não surpreende que todas essas bandeiras anti-“minorias” tenham São Paulo como solo fértil. Primeiramente, os desbravadores do sertão; depois, os barões do café e, também, seguindo até os dias de hoje, a “locomotiva do Brasil”. O lugar que mais se beneficia economicamente com a desigualdade de um país como o Brasil precisa ser aquele em que qualquer bandeira que prometa uma melhor distribuição de renda precisa ser totalmente rechaçada. É claro que há a desculpa esfarrapada da corrupção, mas isso não deveria enganar nem o mais ingênuo dos otários, uma vez que são criticadas apenas as corrupções do partido dito de esquerda que parece pôr em risco o poder político da elite, nunca as do seu partido porta-voz (porta-voz dos interesses da sua classe de rentistas. Porta-voz da política de tolerância zero contra “o crime”. Porta-voz da criminalização dos movimentos sociais). Na realidade, mais importante do que os escândalos de desvio de dinheiro público desse partido adversário é a estrela vermelha como slogan. É o conflito simbólico resultante do fato de esse partido ter como liderança um ex-sindicalista e sempre se associar à classe que não é a alta. Trata-se de um partido que se vincula simbolicamente à ralé da sociedade e procura atender aos seus anseios (de forma um tanto acanhada, diriam os mais revoltosos). Mas a ralé é a ralé. “Por que a ralé entra no planejamento político?” se pergunta o antipetista. A ralé que apodreça na senzala, nas prisões, nos sertões, na favela, na pobreza. O antipetista diz pensar que não existe uma causa socialmente relevante para a existência de problemas que são, na realidade (diz ele), fruto de naturezas humanas diferentes.

Trata-se apenas da atualização de um discurso muito antigo.

E o mais curioso é que esse discurso não tem se restringido apenas às classes que mais lucram com o brutal sistema sócio-econômico brasileiro: ele provém também das classes médias com grande vigor e, curiosamente, também das classes baixas. Em sociedade que continua naturalizando como falha biológica a desigualdade social, ninguém quer se associar à ralé. Pode-se até não se ter ganhado dinheiro na vida como ganhou a Maité Proença, mas é importante ser antipetista como ela. Dizer-se antipetista é colocar-se discursivamente mais próximo da classe patronal e, por isso, simbolicamente mais longe da senzala, da prisão, do sertão, da favela e da pobreza, por mais que materialmente a ligação efetiva seja com esse mundo, não com o senhorial. E talvez até fizesse sentido, em um primeiro momento, que se dissesse defender os interesses dos senhores. Afinal, todas as armas estão apontadas caso se seja negro, pobre e minimamente relacionado a movimentos sociais: as armas são a rede Globo (como cabeça de um grupo também formado pelos jornais O Globo, O Estado de São Paulo e a irresponsável revista Veja), a polícia militar e a recusa do mercado de trabalho. Mas não se trata mais apenas de uma artimanha das classes mais pobres. O sentimento entranhou-se. Mas o motivo do “entranhamento” do antipetismo inclusive nas classes pobres é assunto para outro texto.

Seja para o antipetista rico, seja para o antipetista pobre, por mais que se tenha perfeita consciência da desigualdade social no Brasil, programa social é panela de fazer vagabundo. A culpa é dele. A punição é para ele. Afinal, a violência da classe pobre com relação à rica sempre foi vista como crime. Já a violência da classe rica com relação à classe pobre é correção. Ao invés de corrigir e/ou eliminar os pobres, esse partido vermelho diz querer eliminar a pobreza. E como eliminar a pobreza sem eliminar os pobres? Talvez utilizando-se de todos os meios legais para distribuir a renda, o que, aliás, é o que se tem tentado fazer com algum grau de êxito.

Aliás, o Brasil saiu pela primeira vez do mapa de subalimentação da ONU. Mas… isso é aumento de Índice de Desenvolvimento Humano? Sim, é mais um resultado do constante aumento do IDH brasileiro. Índice esse, aliás, que não entra na conta do PIB. Mas o Brasil precisaria (dizem tanto a mídia brasileira quanto o FMI) ter feito um superávit maior! Por que o Brasil esteve nesses últimos anos mais preocupado em distribuir a renda? Ora, esta não deveria ser a questão principal, diria a ciência exata que é a economia; a questão principal era o crescimento econômico, nem que fosse por meio, novamente, da “via prussiana brasileira”, como já foi diversas vezes chamada a selvagem maneira brasileira de crescer.

Até porque, segundo o antipetista, não se trata de uma gigantesca desigualdade social de um país que teve mais de três séculos de escravidão. Não. Segundo ele, se trata de uma diferença entre “país produtivo” e “país improdutivo”. E tampouco se trata de “distribuição de renda”, isso é discurso ideológico de esquerdista. Na verdade, é “país produtivo pagando a conta do assistencialismo de Estado ao país improdutivo”. No seu raciocínio, se rico ganha bolsa para estudar no exterior, é investimento bom; se pobre ganha bolsa para conseguir não morrer de fome para tentar exercer (com as condições biológicas exigidas para tal) alguma atividade produtiva, aí o dinheiro foi mal investido. Porque, diz ele, o que o governo deveria fazer era ensinar a pescar ao invés de dar o peixe. Entretanto, o filho do antipetista, quando vai aprender qualquer coisa na escola, ganha um café da manhã reforçado, porque ele, o antipetista pai, sabe perfeitamente bem a importância desse fato. Por isso, se for um bom pai, colocará à disposição do filho o necessário de carboidrato, proteínas, vitaminas, mega x, y e z. Sabe que se o filho dele estiver desnutrido (imagem horrenda que nunca lhe ocorreu jamais), não será capaz de aprender nada. Só que no caso dos outros, a nutrição tão necessária para qualquer processo de aprendizagem é safadamente ignorado. É que o raciocínio da Casa Grande é e sempre foi um raciocínio safado: os “naturalmente” “vagabundos”, “indecentes”, “indolentes”, aprendem com a dor. Por isso, a política deveria considerar ele. Só ele. E caso você não concorde com o raciocínio dele, você não pode jamais estar sendo razoável. Você é burro, diria o Jabor. Você está se aliando aos analfabetos para perpetuar a burrice, a asnice, a jumentice brasileira. Não o contrário. E assim sendo, se você é petista, você é burro; se é tucano, é inteligente. Como se nota, novamente entra em cena a tal neutralidade das escolhas políticas e político-econômicas. Não se trata de “escolha”. Trata-se de “saber”, de “descobrir” o valor intrínseco do combate ao PT. Se não sabe, é burro…

É curioso até esse raciocínio. Se não fosse trágico, seria cômico.

Por essas e outras não é necessário ser petista para notar que o antipetismo é uma versão atualizada de uma ideia que infelizmente perpassa toda a história do Brasil. Como nos contou Renato Janine Ribeiro recentemente em entrevista à CartaCapital, nos anos 1960, quando havia a discussão sobre o fim da segregação racial nos Estados Unidos, no Brasil, dizia-se que aquilo não era necessário aqui porque os negros do Brasil sabiam bem o seu lugar. No Brasil, o pobre deveria continuar lembrando qual é o seu lugar. E qualquer menção de tentar fazê-lo esquecer se trata, diz o antipetista, de esquerdismo de gente corrupta, de burrice. Tudo o que não fortalece o domínio dos grupos que se sentem não tão privilegiados como outrora é falso, burrice, jumentice, asnice. Como já apontava Geertz, a “verdade” está em casa, e sair de casa para encarar o outro pode ser muito difícil. Por isso, é importante que a “verdade” seja apenas a verdade de casa. No caso do Brasil, é a verdade de uma Casa Grande que não consegue lidar com as consequências sociais da sua própria existência. Reclama com muita indignação quando alguém diz que tentará aumentar o nível de vida dos miseráveis, e os mais exaltados se dizem com medo dos comunistas, por mais que ninguém, nessa relação, esteja pondo em risco o seu domínio. Entretanto, para o antipetista, esse domínio deveria ser o mais absoluto e completo, sem a menor contra-argumentação. E o seu domínio deveria estar no âmbito econômico, político, social. E também no intelectual, espiritual e moral.

*Rafael Mantovani é doutorando em sociologia pela USP, mestre em Ciências Sociais pela PUC/SP e colaborou para Pragmatismo Político

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