Nada do que é humano me é estranho? - Mário Sérgio Cortella
Certa vez, Laura, filha de Karl Marx, submeteu o grande pensador alemão a uma brincadeira divertida: responder a uma daquelas entrevistas relâmpagos (tornadas moda nas revistas e jornais do século seguinte ao deles) que, a pretexto de desnudar a intimidade de uma personalidade ou de um ídolo, perguntam qual a cor favorita, o prato favorito, o herói favorito etc. Depois de responder que a cor é a vermelha, o prato é o peixe e o herói é Spartacus, aparece entre os quesitos (registrados em um bem preservado manuscrito em idioma inglês) aquele que indaga pela máxima favorita, e Marx não titubeia: "Nihil humani a me alienum puto" (Nada do que é humano me é estranho), querendo afirmar sua convicção na idéia de fraternidade e humanidade coletiva.
Essa resposta oferecida pelo generoso filósofo expressa, com propriedade, os ideais aos quais se dedicou sinceramente por toda uma turbulenta existência. No entanto, nos nossos tempos ego-narcísicos, estamos perdendo as perspectivas de construção de uma convivência humana irmanada; cada vez mais ganham destaque outros ditados como: "Cada um por si e Deus por todos", "Cada macaco no seu galho" ou ainda "Quem pariu Mateus que o embale".
É interessante observar que a máxima por Marx admirada tem como fonte original a peça "O Atormentador de Si Mesmo", obra de Terêncio, comediógrafo latino do século 2 a.C., na qual se relata a história, ocorrida em Atenas, de um vizinho abelhudo que se intromete na vida dos outros sem perceber que coisas piores estão acontecendo dentro da própria casa dele. Como justificativa para os contínuos e inoportunos palpites que dava, esse vizinho fala: "Homo sum: humani nil a me alienum puto", isto é, sou homem e nada do que toca o homem julgo que me seja alheio.
O sentido da frase, nessa comédia, é totalmente diverso e muito menos honroso do que aquele propugnado por Marx, mas, infelizmente, muito mais próximo de nós, nos tempos atuais. A intenção marxiana é ressaltar o dever de compreender a noção de humanidade como a prática de uma espécie de "um por todos, todos por um". Já na acepção original e, agora, contemporânea, é a defesa do direito à futrica, à fofoca e ao voyeurismo desenfreado que assola um certo tipo de mídia, altamente rentável, especializada na exposição impressa ou televisiva do espetáculo proporcionado pelas delícias vividas pelos apaniguados e supostamente protegidos pelo destino e o inferno cotidiano dos fatalmente miseráveis e desgraçados.
Nada do que é humano nos é estranho? Nem sempre, dado que até a maioria dos odores humanos naturais nos desagrada. Não nos incomodamos em acariciar o dorso suado de um cavalo ou caminhar em meio aos cheiros que exalam de uma estrebaria ou curral (alguns proclamam apreciar esses aromas); porém a fragrância do suor humano incomoda, assim como muitos consideram insuportáveis os fluidos emanados de um banheiro (limpar banheiro é sinônimo de castigo!). Somos capazes de, ao caminhar pelas ruas, desviar sem problema de fezes caninas ou felinas; contudo encontrar fezes humanas é motivo de asco, repugnância ou distanciamento, tal como quando nos deparamos com mendigos, doentes crônicos, menores abandonados.
É por isso que, para não poucos, o sonho de paz e vida feliz é poder retirar-se para uma ilha paradisíaca, distante de tudo e afastada do maior número possível de humanos e humanas, isto é, isolar-se: ilha, condomínio fechado, alto da montanha, praia privativa, local inacessível; no máximo, horrorizar-se ou alegrar-se virtualmente com o que acontece com a humanidade, mas sem chegar muito perto.
Talvez, parodiando Nietzsche, seja preciso lamentar que, por enquanto, tudo isso seja humano, demasiado humano...
[Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, Caderno Equilíbrio, em 31 de agosto de 2000]
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