A primavera brasileira - Ciro Gomes

A linguagem política precisa ser resgatada. Outras expressões, valores básicos de decência, espírito público, amor verdadeiro ao povo, parcimônia, sinceridade, compromisso, projeto
 
Acompanho entre maravilhado e preocupado essas expressivas manifestações populares que, cada vez maiores, acontecem por todo o Brasil. Há muitos motivos, muitas razões, muitas interferências, muito oportunismo e muita energia democrática hoje nas ruas do País.

Não importa tanto o nível de pacifismo do movimento, embora o Mahatma Gandhi e Nelson Mandela sejam mais interessantes para mim do que Joseph Stalin. Importa muito mais entendê-lo e não deixar o mundo politiqueiro brasileiro cooptá-lo, manipulá-lo, desqualificá-lo ou, muito menos, reprimi-lo.

Quando o PT se acertou com o PMDB em Brasília e submeteu praticamente todas as expressões organizadas do pensamento progressista brasileiro a esse banquete cínico e fisiológico, pensava ter praticado o crime perfeito. É isso ou a volta ao passado neoliberal privatista e antinacional, elitista e rentista. Pior, para o povão, a petezada espalhou em todos os lugares que, se perdessem as eleições, o Bolsa Família iria acabar. E a história acabara no Brasil!

Sindicatos, entidades estudantis, partidos de esquerda, o meu inclusive, artistas, intelectuais, movimentos comunitários... Tudo dominado pelo suborno ou pela chantagem. Pelo constrangimento ou, principalmente, pela falta de alternativas. Eis aí a origem dos acontecimentos. Colapsou a política. Ficou claro que o rei da ilegitimidade funcional de nossa representação política está constrangedoramente nu.

Uma atenção internacional claramente é pedida pelo povo brasileiro. Veja, humanidade, a m... que acontece aqui! Este poderia ser o slogan unificador dessa Babel maravilhosa. Não gosto muito dessa parte... Preferia que lavássemos nossa sujíssima roupa por aqui mesmo.

Não creio que a maioria seja propriamente contra a Copa. Lembro da genuína alegria do povo quando recebeu a notícia da nossa vitória na disputa internacional para sediá-la. Flagrante nessa falsa contradição entre Copa e saúde pública, Copa e educação, Copa e segurança ou Copa e transporte ou moradia, ou ainda, e especialmente, Copa e corrupção, é a inexplicável contradição entre nossa capacidade de, sob a autoritária e intrusiva supervisão da também vista como corrupta Fifa, cumprirmos exemplar e belamente toda a agenda dos estádios, acessos e organização. E não estabelecermos uma agenda planejada para atacar de forma consequente os verdadeiros problemas do nosso dia a dia.

É outra manifestação explícita do colapso de nossa política. Cadê o plano, o caderno de encargos, os prazos, as avaliações, os controles, os resultados, para nossas demandas?

Vamos dar a mão à palmatória: o Brasil navega a esmo. Não tem projeto para nada importante. A economia se deteriora a olhos vistos e Brasília só responde com favores inexplicáveis a grupos de interesse. A política movida a fisiologia, clientelismo e corrupção tem os mais incríveis protagonistas que já vi na vida. O ministro da Saúde de Fernando Collor era o grande brasileiro Adib Jatene. Jorge Bornhausen, seriíssimo e experiente, coordenava a política. E deu no que deu. E hoje? Quem auxilia a principiante, na arte, Dilma Rousseff?

Crimes perfeitos não existem. E agora? Chama o São Lula? Ridículo. Apostemos num moralismo difuso, regado a reacionarismo religioso e igualmente difusa homenagem à natureza? Chamamos um choque de gestão? Contem-me outra.

A linguagem política precisa ser resgatada. Outras expressões, valores básicos de decência, espírito público, amor verdadeiro ao povo, parcimônia, sinceridade, compromisso, projeto.

Toda impaciência se dilui diante de um plano com começo, meio e fim, com prazos e resultados previstos. Qualquer intolerância some ante a demonstração exemplar de austeridade diante das dificuldades do País.

O dinheiro dado às montadoras e transformado em criminosa e recorde remessa de lucros ao estrangeiro subsidiaria uma redução generalizada dos custos de transporte popular no Brasil. Só para dar um exemplo prático. Mas isto também não deveria ser proposto fora de um novo e esperançoso projeto nacional de desenvolvimento.

Se tal não for produzido com urgência, sabemos onde tudo pode acabar. Não raro na história humana movimentos de massa descambaram para o protofascismo ou para a violência pura, simples e estéril.

Seria uma pena.

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