A alma, a fome e a fé



Não tem como não se emocionar com uma declaração de amor dessas...
------
Eu me curo no passado. Novas feridas, velhos remédios. Quanto mais o Flamengo perde identidade, mais eu mergulho nos meus cadernos já amarelados, nos álbuns de recortes que eu menino montava sob a supervisão de meu pai e que viravam relicários rubro-negros. Também fuço a Internet atrás de camisas antigas, fotos, chaveiros, qualquer coisa que sirva de elo entre o Flamengo que me fez flamengo e o tempo presente. O tempo presente: áridos dias de presidente omissa e seu marido tricolor, sem ídolos em campo, sem certeza de nada, sem a cura ancestral de uma tarde de sol no Maracanã.

No Flamengo revisitado que mergulhei depois do empate com gosto de nada diante do Cruzeiro surgiu um personagem. Zinho.




















Primeiro, abri um dos álbuns de recortes. De cara, Zico mandando um voleio pra cima de Acácio, lance da decisão da Taça Guanabara de 1989. Manchetes de jornais e da Placar e fotos menores adornam a foto maior. Na página da esquerda, Bebeto comemora um dos gols daqueles 3×1, abraçado por Leonardo enquanto Zinho se aproxima para aumentar o abraço. Zinho, pensei eu, o elo entre aquele imenso Flamengo do Maracanã de todos nós e este que se arrasta no Engenho de Dentro.
















Caí na Internet atrás de fotos antigas. A primeira que apareceu foi justamente de Zinho. O anúncio diz apenas Poster Zinho Do Flamengo 1986 Placar. É uma foto de Zinho ainda garoto, retrato do rubro-negro quando jovem, correndo com os braços erguidos e as mãos espalmadas, comemorando um gol em um domingo qualquer.

Mas nunca houve um domingo qualquer.

O hábito de garimpar fotos me conferiu uma habilidade estranha. O de olhar para a cena e, de acordo com o modelo do Manto e com os espectros do fundo, identificar o jogo, o dia, o momento exato congelado pelo fotógrafo. Não leva nem dez segundos.

Notem que há uma inscrição na manga esquerda. Trata-se da estampa “90 anos”, usada durante o ano de 1986. Vejam que o adversário usa camisa branca e calção vermelho. É o América. Um jogador rubro-negro ao fundo comemora, e usa uma munhequeira branca. A memória processa os dados objetivos e subjetivos, as informações da foto e as lembranças e pronto: é o jogo Flamengo 2×0 América, campeonato brasileiro de 1986. O que Zinho comemora é o primeiro gol. Mozer entrou na área pela direita, chutou forte e rasteiro e Zinho fechou no segundo pau para escorar. Por isso Mozer aparece ao fundo, enquanto Zinho vem para comemorar com a sua gente, ali no gol à esquerda das tribunas.

O lance está no Fla Museu do meu amigo Marcelo Espíndola, mas vejam que Milton Neves diz que o autor do gol é Marquinho Carioca. Não, Milton, foi o Zinho. O primeiro gol dele pelo time profissional do Flamengo no Maracanã.

Busco na expressão do moleque Crizam um sentimento que não se vê mais. Os olhos admirados com o próprio feito, marcar um gol pelo Flamengo no maior estádio do mundo. A boca abrindo-se meio de júbilo, meio de espanto. Ele não sabia que seria duas vezes campeão do Brasil com aquela camisa 11, que faria outros gols no Maracanã ensolarado ou chuvoso, até gol em final de campeonato, até gol em passe de Zico, até passe para gol de Zico, até. Bastava a alegria daquele momento porque o Flamengo era pleno domingo após domingo.

Zinho também não sabia que ia sair do Flamengo, rodar o mundo e voltar ao clube para encerrar a carreira de boleiro e iniciar a de cartola. Zinho não sabia que estaria neste 2012 em um Flamengo que veste o mesmo vermelho e preto mas não tem a mesma alma, a mesma fome, a mesma fé.

Reúna os garotos de hoje, Zinho, de preferência longe dos velhos burocráticos do elenco. Mostre a eles essa foto. Diga que você já foi como eles, e que daria tudo para ser outra vez o garoto que está correndo para a massa, que estava feliz não porque iria para o futebol gringo ou para a seleção, mas porque estava vestindo uma camisa que não se compara a nenhuma outra.

Mostre a eles a foto, Zinho, e peça que, contra a Portuguesa, joguem por você. Por mim. Por quem ama o Flamengo como o Flamengo merece ser amado. Talvez assim ao Flamengo que vai pisar o gramado do Canindé não falte alma, fome e fé. Se eles te ouvirem, Zinho, venceremos. Porque esses meninos não sabem, mas é disso que é feito o Flamengo de verdade. Da alma. Da fome. E da fé.


Mengão Sempre

Comentários

Postagens mais visitadas