Flamengo não é favorito desde Zico. E daí?!

Arthur Muhlenberg 

Muita gente que não me conhece vem até o blog, lê os absurdos que escrevo e fica pensando que eu sou um maluco perigoso. Um rubro-negro hidrófobo babando em vermelho e preto e que só anda arrodeado de Flamengos em uma patota de 40 milhões de pessoas. E a culpa por passar uma imagem tão apartada da realidade é exclusivamente minha, porque comunicação não é o que você fala ou escreve. Comunicação é o que os outros entendem.

E a realidade é que tenho mesmo muitos amigos bem vestidos. Mas tenho também um bocado de amigos que não tiveram a sorte de fechar com o certo e hoje andam por aí, como nossos satélites, girando em nossa órbita, atraídos pela extraordinária força gravitacional do Planeta Flamengo.

E se esse pequeno desvio comportamental não os fez pessoas melhores também não os fez piores. Apesar das camisas feias que volta e meia ostentam em total desprezo pela estética no mais das vezes são gente boa, confiável e de agradabilíssima convivência.

A paixão pelo futebol serve para muitos propósitos além de dar sentido às nossas existências entre as 4 e as 6 horas das tardes de domingo, mas não deve ser usada como quesito eliminatório na hora de escolher amigos. Afinal, o futebol é a apenas a coisa mais importante entre as coisas desimportantes deste mundo.

E, ainda que que soe bizarro, é perfeitamente possível encontrar a amizade, o companheirismo e até mesmo o amor em meio as hostes da arcoírislândia. Eu mesmo já estive casado com uma vascaína e com uma torcedora do Boca (não com as duas ao mesmo tempo) e não nego que já dei uns rolés com uma jovem botafoguense (sim, existem botafoguenses jovens). As tricolores então, nem se fala, se não fossem elas quem iria pôr tantos rubro-negros no mundo?

Creio já ter demonstrado que a amizade verdadeira independe da paixão clubística. Amizade é a tendência de desejar o melhor pro outro, é a simpatia e a empatia, a honestidade e a lealdade. Amizade é a capacidade de tolerar os defeitos do amigo e mesmo assim ser capaz de dividir os bons e os maus momentos. E isso não depende em nada do time para qual os amigos torcem.
Vejam esse caso, tenho um amigo, que não é Flamengo, que é corno. Esse amigo arcoírista já foi traído, enrolado, bicicleteado, bolanascosteado, passado pra trás e gloriosamente chifrado pela sua amada esposa uma porrada de vezes. E ele continua loucamente apaixonado, e repare que ela, apesar de ser mesmo muito gostosa, também não é Flamengo. Esse amigo é daqueles materialistas dialéticos que preferem dividir o filé a comer carne seca sozinho. Sim, além de corno o cara é comunista.

O problema desse meu amigo é que ele sofre de raríssima síndrome hipertiméstica, uma doença infernal que o faz lembrar de tudo. E quando digo lembrar de tudo, é lembrar de tudo mesmo. Ele lembra como se fosse hoje, de cada minuto desde que acordou até o momento em que desabou em pré-coma alcoólico, do dia em que seu time contrariou o determinismo histórico, quebrou um jejum que parecia eterno e conseguiu dar uma volta olímpica na vida.

Mas lembra também, com riqueza de detalhes, de cada vez que madame saiu de casa pela manhã com uma calcinha preta e voltou à noite usando uma branca. E de cada desculpa esfarrapada que ela usou pra justificar a radical mudança no figurino. Como se vê, a memória prodigiosa desse amigo é ao mesmo tempo uma benção e uma maldição.

E foi esse amigo que me chamou a atenção para o fato de que o Flamengo, desde que o ciclo glorioso de Zico, Junior e Adílio se encerrou, jamais obteve êxito na condição de favorito. Pior, o amigo pontificou com inegável precisão que sempre que estivemos nessa condição protagonizamos nossos maiores micos. Que foi como favoritos que estrelamos nossos grandes vexames.

E o maldito e inconveniente amigo corno, arcoírista, comunista e hipertiméstico desfiou então em rápida sequência a lista maldita de nossas desrealizações recentes que vinha desde o Fla-Flor de 95, incluía a CB perdida pro Santo André em 2004, o Americanazo de 2008, inexplicáveis empates com o Foguinho e até o 3 x 3 com o Olímpia. Em todas essas tragédias o traço comum era o amplo, incontestado e descarado favoritismo do Flamengo.

Que corno sem vergonha! O pior é que ele está absolutamente certo. Depois de Zico o Flamengo desaprendeu a ser favorito. Nos últimos anos a responsabilidade advinda da superioridade inconteste tem sido pesada demais para quem teve a missão de manter os mesmos padrões de eficiência alcançados pela nossa geração de ouro. É muita pressão e quem não pode com ela se arrebenta.

A antítese de todo esse blá é facilmente exemplificada pela conquista do nosso mais recente campeonato brasileiro. Todo mundo sabe que em 2009 o Flamengo seguiu com rigor extremado o manual não escrito de como não vencer uma competição importante.

Tivemos todos os ingredientes para fazer dar tudo errado, eleição no clube, troca de técnico, demissão de dirigentes, poucos treinos, muita farra, goleadas vergonhosas para times de segunda divisão e a institucionalização da putaria. E mesmo assim, em luta renhida contra a lógica e o bom senso, terminamos a temporada como hexacampeões do Brasil. Valeu, Andrade, Adriano, Pet e Angelim.

O problema da conquista do Brasileiro é que nos colocou na condição de favoritos na Libertadores do ano seguinte. O que automaticamente destruiu nossas chances, pois como disse meu amigo casado com aquela leviana muito gostosa, o Flamengo desaprendeu a ser favorito.

Talvez essa teoria seja a nossa tábua de salvação. É a esse embaraçoso desfavoritismo que devemos nos agarrar, principalmente durante as primeiras 36 rodadas do acromegálico Campeonato Brasileiro de 380 jogos. Que deixem o Flamengo ir comendo pelas beiradas, sem assustar ninguém, no sapatinho frenético e na palhaçadinha zero que nos consagrou em 2009. Lembrem-se que naquele ano o Flamengo estava em 12º lugar na 23ª rodada. Brasileiro não é corrida de 100 metros rasos, Brasileiro é maratona.

Antes mesmo de conhecer a teoria do meu amigo chifrudo já tinha plena convicção de que mesmo todo errado o Flamengo pode surpreender. Não a nós, que mesmo quando emputecidos estamos sempre preparados para o trinfo. Mas à arco-íris mal vestida e seus 19 timinhos que mais uma vez tentarão se colocar entre nós e o nosso hepta.

Vai ser difícil pra caramba. Talvez as coisas até piorem antes de começar a melhorar. Precisamos estar preparados para essa hipótese. Mas vale a pena ter fé. Ninguém pode negar que desde 1895 o Flamengo escreve certo por linhas tortas. Só temos que ter um cuidado: não podemos nos tornar favoritos.

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