A tragédia das más decisões - Alfredo Roberto Marins Junior

“Justificar tragédias como "vontade divina" tira da gente
a responsabilidade por nossas escolhas.”
Umberto Eco

Frequentemente associamos a palavra tragédia a algum acontecimento desafortunado ou acidente de grandes proporções. Historicamente, tragédia é um gênero teatral que relata a queda de um herói, geralmente um nobre (rei ou fidalgo) e está associada, na maioria das vezes à uma decisão precipitada.

Conta-se que o jogo de xadrez foi inventado por um jovem chamado Dahir al-Hindi para agradar um rei hindu desanimado. Ao ver o tabuleiro, as peças e toda a lógica de combate do passatempo, animou-se e permitiu que o inventor escolhesse sua gratificação. Não escolheu nem ouro, nem prata, mas trigo. Trigo na seguinte proporção: 1 grão na primeira casa do tabuleiro, 2 na segunda, 4 na terceira e sucessivamente o valor deveria dobrar a cada casa até a 64ª e última.

18.446.744.073.709.551.615 de grãos de trigo 
seriam necessários. Em peso, equivaleria a 97 bilhões de toneladas.  
O rei, pensando que num punhado de trigo haveria um número incontável de grãos, deduziu que com duas ou três medidas pagaria com folga a solicitação do rapaz. Mandou que seus hábeis matemáticos calculassem a quantia e quase caiu de costas quando soube do absurdo volume de trigo que teria de pagar. Ainda que vendesse todos os seus bens, não bastaria. Sorte que o rapaz não exigiu o pagamento, ele só queria demonstrar ao rei o poder de uma má decisão. 
Na mitologia hindu há a história do rei Mahabali, que por ser muito generoso tinha a devoção de seus súditos, o que fazia seu reino prosperar grandemente. O único problema é que ele era um Asura, um dos inimigos dos deuses.

Prevendo que este reino cresceria demais e se tornaria demasiado poderoso, Vishnu, o conservador do universo, encarnou-se no ventre de Aditi, que era esposa do brâmane Kashyapa. Ao nascer nesta casta, ele foi considerado também um brâmane, mas com uma peculiaridade: nascera como um anão, de nome Vamana.

Quando se tornou adulto, Vamana pediu uma audiência com Mahabali para solicitar-lhe um pedaço de terra para viver. O Asura não viu problema algum em atender tal pedido, afinal, que tamanho teriam três passos de um anão? 

Ele atendeu ao pedido do pequeno brâmane e, para sua surpresa, Vishnu tornou-se enorme. Seu primeiro passo abarcou metade da terra, o segundo o fez voltar ao lugar de partida ( o que lhe garantia o mundo todo) restava ainda o terceiro passo, que Vishnu indagava onde pisaria. Mahabali então, respondeu que o terceiro passo seria sobre sua própria cabeça. 

Ainda que esta resposta pareça estranha, era a única forma de não morrer. Aceitando o pedido do brâmane, ele não tinha como voltar atrás. Perdido seu reino, sua única saída foi permitir que o conquistador colocasse a sola do pé sobre sua cabeça, aceitando a derrota e ficando sob sua proteção. Uma saída estratégica para um rei que não avaliou bem a extensão de sua decisão.

Mas de todas as tragédias ficcionais, a que mais se adéqua à realidade é a do Rei Lear de Shakespeare. Recomendo uma criteriosa leitura desta obra, caso não tenha feito. É a meu ver, a melhor do bardo inglês.

Tudo começa quando Lear decide dividir seu reino entre suas três filhas, Goneril, Regan e Cordélia. Sua queda trágica começa com a decisão de deixar de ser rei, mas não deixar o prestígio de rei. Lear não queria mais ter os encargos ou as responsabilidades do trono, mas não abria mão das regalias.

Ele divide seu reino, mas quer manter para si cem servos e o título de rei. Dá as frações de terra para seus genros governarem, mas ainda espera que suas ordens valham mais do que as ordens deles. Em suma, ele queria uma vida livre do fardo que sua posição exigia, mas queria continuar com os benefícios que ela concedia.

E, honestamente, nada mais atual que esta obra. Basta olhar ao nosso redor: políticos que querem ter altos salários e benefícios, mas só trabalham (quando vão) três dias por semana. Trabalhadores que reclamam de seus baixos salários em comparação aos salários de outros, sem observar que estes “outros” falam idiomas estrangeiros fluentemente, fizeram especializações, pós-graduações, enquanto que o reclamante está sempre postergando a conclusão de um curso qualquer.

E por aí afora. King Lear é a tragédia que representa fielmente um dos mais profundos desejos do ser humano: ganhar na loteria. Não tornar-se culto ou melhorar a vida de seu semelhante, mas tornar-se repentinamente milionário sem empenho, alcançar a glória sem luta, conseguir status sem arriscar-se e viver uma vida sem responsabilidades.

É claro que esta escolha só pode terminar em tragédia!


P.S.: A lenda do jogo de xadrez, contada por Malba Tahan diz que para que o tabuleiro fosse coberto na proporção que seu inventor pedira, seriam necessários 18.446.744.073.709.551.615 de grãos de trigo. Se empilhado, formaria uma montanha 100 vezes mais alta que o Himalaia. Em peso, equivaleria a 97 bilhões de toneladas. Considerando que a produção de trigo mundial do ano passado foi de 657 milhões de toneladas, o rei precisaria, utilizando todo o trigo do mundo, de 147 anos para pagar a dívida.

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