Quanto custa o alaranjado? - Eugênio Bucci

Uma leitura instigante sobre significantes, significados e fabricação de valores a partir da campanha publicitária do Banco Itaú. A semiótica não precisa de letras, números ou logos para construir sentidos. O dado novidoso é: em nossa era é possível fabricá-lo. Basta lançar mão da indústria que atua no nosso imaginário.
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As festas de fim de ano passaram, o Dia de Reis ficou para trás, tudo conforme previa o calendário: o Natal veio antes, o ano-novo, em seguida e, agora, o Brasil avança alegremente rumo ao carnaval. Sem surpresas. Nas festividades da televisão, porém, um detalhe destoou do óbvio, daquilo que era mera repetição anual da lengalenga publicitária. Ao lado das campanhas usuais, com os governantes fazendo seu papel predileto, que é o de Papai Noel - dezembro é a temporada preferencial da propaganda oficial -, com os astros entoando cantigas caridosas, com uso abusivo de crianças em peças de marketing, nós tivemos, nos estertores de 2011, uma peça distinta: a superconcentração de anúncios de uma certa casa bancária com o propósito não de fazer votos de feliz Natal, mas de tomar posse, para si, de uma das cores que a natureza nos deu. Para que o leitor visualize bem do que se trata, vamos dar nomes aos personagens: o banco é o Itaú e essa cor é o alaranjado. No final de 2011, o Banco Itaú virou o dono do alaranjado.
Em poucas palavras, comprando fatias de tempo do olhar social, a indústria da comunicação - e a publicidade, de modo especial - consegue, atualmente, fabricar novos sentidos para significantes antigos. Nisso se resume um dos traços que distinguem a nossa era das outras - uma era em que é possível fabricar valor por meio da indústria que atua no imaginário.
Antes de qualquer outra consideração, duas ressalvas preliminares são necessárias: A campanha do Banco Itaú não é de agora, ela já vem de um bom tempo. Em 2011, no entanto, ela se acentuou. A cor laranja, que alguns poderão chamar de cenoura, ficou absoluta, ou mesmo total, em todos os comerciais do Itaú na TV.
Nada contra essa cor em particular - e muito menos contra esse banco, que também é particular. Aliás, ainda no clima conciliatório das conclamações natalinas, pode-se dizer que a campanha do Itaú só merece elogios. Ela não ataca ninguém, não fomenta a usura nem estimula o egoísmo. Em lugar disso, consagra atitudes pessoais meritórias, como a iniciativa, o sorriso, a confiança (atitudes que, de resto, viraram uma espécie de commodity em campanhas publicitárias dos bancos em geral). Não há nada de eticamente reprovável, enfim, na atual investida imagética do Itaú de pretender se associar ao alaranjado. A Coca-Cola tem a sua cor vermelha característica, que, aliás, é a mesma dos caminhões de bombeiro e das camisas dominicais de Hugo Chávez; Paulo Coelho só se veste de preto; o roxo tem alguma coisa que ver com a Quaresma, ou talvez não seja bem isso, mas, de todo modo, o roxo é praticamente patenteado pela Igreja Católica. Por que um banco não poderia ter a sua própria, digamos, faixa cromática, uma que fosse só sua, inconfundível? Não há nada que o impeça - e não há ninguém, aqui, que vá censurá-lo por isso.

Apenas é o caso de pensar um pouco. A começar pela constatação de que a campanha tem sido bem-sucedida.

O leitor, que é acima de tudo telespectador, haverá de se lembrar. Na peça publicitária do Itaú no final do ano havia um jovem de jeans, tênis e moletom fazendo um discurso a la Steve Jobs, tendo ao fundo uma tela descomunal de cor laranja. Era uma figura positiva, simpática, motivadora, boa de fazer palestras para equipes de vendas nessas confraternizações que algumas firmas fazem um pouco antes das férias coletivas. Por isso é provável que, hoje, cada um de nós já tenha associado esses dois elementos como se eles tivessem nascido juntos: o alaranjado e o Banco Itaú. Lembremos que o banco, por sinal, já tinha azul e amarelo em seu logotipo, mas trocou os dois por esse novo laranja. Repita-se: com alto grau de eficiência.

Sigamos pensando um pouco mais - e pensar, ao menos numa das acepções do verbo, significa enxergar problemas onde aparentemente só existem soluções. Vejamos, então, que problema existe na solução publicitária pela qual uma marca se apropria de uma cor.

Bem, talvez não seja bem um problema, mas estamos aqui diante de um dado novo, que, uma vez percebido, tem o poder de intrigar. Os significantes, como as cores, estão aí, à solta, no imenso cosmo disso a que chamamos imaginário. Sempre estiveram por aí. Hoje, porém, vira dono deles aquele que, tendo acesso ao olhar social, consegue juntar esse significante a um significado específico. Isso se constrói com a comunicação de amplo espectro. Assim, a cor laranja - que originalmente tem vocação para significar pouca coisa além de suco de frutas cítricas - adquire este sentido poderoso: ela agora quer dizer Banco Itaú. A ponto de, em breve, quando alguém olhar para um automóvel dessa cor, ou um caminhão, ou uma parede, um tapete, um paletó, vai vinculá-lo ao banco. Em poucas palavras, comprando fatias de tempo do olhar social, a indústria da comunicação - e a publicidade, de modo especial - consegue, atualmente, fabricar novos sentidos para significantes antigos. Nisso se resume um dos traços que distinguem a nossa era das outras - uma era em que é possível fabricar valor por meio da indústria que atua no imaginário.

Para fechar nosso precário pensamento, registremos aqui duas curiosidades: O banco em questão, ao pôr no ar essa campanha, não tem o objetivo de simplesmente atrair correntistas ou vender a sua caderneta de poupança, mas de retrabalhar o seu próprio signo, distanciando-se e diferenciando-se dos demais. Por meio disso a que os publicitários chamariam de "estratégia", sua marca vai caminhando para poder ser lida e entendida sem que seja necessário o uso de nenhuma letra, de nenhum símbolo, nada. Basta-lhe uma cor.

O mesmo banco, de antemão, não tem nada que ver com essa cor especialmente. Ele não é fabricante de suco. Não tem plantações de cítricos. Não exporta extrato de laranja para a Flórida. A cor para a sua "estratégia" é um significante disponível, que, depois dessa intensa e nova construção de sentido, vai virar um sinônimo da marca.

O Homo sapiens já foi coletor de frutas, de pedras, de ossos que pegava no caminho. Hoje as marcas comerciais coletam cores na natureza. E os nossos olhos, ainda mal remunerados, trabalham para dar sentido a tudo isso.
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Estadão – 12/1/2012

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