Em busca da brasilidade - Affonso Romano de Sant´Anna

Publicado no relatório anual do Banco do Brasil, em 1997, o autor faz uma viagem fantástica sobre os elementos de brasilidade que evocamos, e questiona-os. Bom para sabermos melhor quem somos. Ou, pelo menos, quem não somos.
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O Brasil tem mudado de pele. E, certamente, de ossatura. Sendo um ser em metamorfose, há 500 anos, é legítimo que o Brasil de hoje não seja exatamente o de ontem, assim como o de amanhã não será o de agora.

Isto contraria uma definição de brasilidade entendida como uma "essência", algo imutável, idêntica a si mesma no fluir dos anos. E introduz uma inquietação e complexidade: o sentimento de "brasilidade" é diferenciado conforme o momento histórico percorrido, assim como é diverso num mesmo instante, conforme as cabeças que pensam o Brasil. 

Qual a diferença entre o que ia na cabeça de Martim Afonso de Sousa na primitiva São Paulo do sec. XVI e o que vai na cabeça de um industrial paulista hoje? Qual a diferença (ou identidade?) entre a visão de Anchieta e Nóbrega e as ações políticas e sociais da Igreja Católica em nossos dias? Em quê o Brasil de Machado de Assis é diferente do de Guimarães Rosa?

Niemeyer diz vir de uma tradição barroca. Mas quais as diferenças e identidades entre ele e Aleijadinho? 

Diria que, na linha do tempo, o sentimento de brasilidade conheceu pelo menos três instantes específicos: o da defesa da territorialidade, o da expectativa imperial e o da consciência nacionalista. E que agora, ao cruzarmos para o século XXI, está sendo de novo redimensionado.


A incorporação da territorialidade coincidiu com os nossos três primeiros séculos: o colonizador aqui radicado, tendo exterminado e /ou dominado os índios, percebeu que o seu destino e o da terra eram o mesmo. O inimigo mais ameaçador vinha do exterior: os holandeses, os franceses e os corsários que queriam aqui estabelecer entrepostos e colônias. 

Com a Independência em 1822 a consciência imperial se configura e domina o resto do sec. XIX. 

Exemplifica-se em guerras de fronteira, que reafirmam a territorialidade e marcam os avanços geoeconômicos e políticos. Os inimigos não vinham mais da Europa, mas eram nossos vizinhos (Paraguai, Argentina, etc.). O Duque de Caxias e Rio Branco são emblemas da consciência de territorialidade associada à consciência imperial. 

No sec. XX, sobretudo a partir dos anos 20 e 30, e depois nos anos 50, 60 e 70, com os monopólios estatais, a exacerbação nacionalista propiciou uma alteração neste quadro. A ameaça não era mais guerreira nem fronteiriça, mas econômica. 

Brasilidade e nacionalismo se confundiram e iniciou-se uma verdadeira disputa ideológica para ver que partido, que líder ou quem era mais e melhor brasileiro. O modernismo literário com comunistas e integralistas, a disputa entre esquerda e direita, são trilhas nessa estrada.

Esses três instantes mencionados podem, no entanto, se superpor. 

Defesa da territorialidade, expectativa imperial e consciência nacionalista, em maior ou menor escala, podem estar no Padre Vieira que pensava no advento do Império de Cristo sediado nos povos de língua portuguesa ou podem estar nos intelectuais modernistas que reeditaram o mito expansionista dos bandeirantes e queriam um "Brasil grande", tanto quanto os generais presidentes, como Ernesto Geisel.


Se os anos 80, através da mística da "cidadania" trouxeram a batalha pelos direitos de "minorias" e "excluídos", é possível que os anos 90 tenham sido um outro momento de inflexão na metamorfose da brasilidade: a entrada na globalidade, força a revisão da consciência nacionalista, cobra uma autocrítica da vocação imperial e confronta a territorialidade real com a territorialidade virtual da era da internet.

Até o final do sec. XIX, por outro lado, a brasilidade era um atributo da elite branca a que tiveram direito os imigrantes que aqui aportaram. Formalmente os ex-escravos negros passaram a se habilitar à brasilidade a partir de 1888 com a lei que os libertou. Os índios apenas no sec. XX, com o Marechal Rondon, começaram a ser convocados para a brasilidade e forçam mais ainda sua participação a partir dos anos 80.

Sintomaticamente na passagem dos anos 70 para os 80, uma pergunta pairou no ar envolvendo a questão da brasilidade: "Que país é este?".


Descobriu-se, então, que em Machado de Assis havia a mesma pergunta numa de suas crônicas. E a mesma indagação estava literalmente escrita num texto de José de Alencar. Isto nos faz supor que Tiradentes lutando pela independência e André Vidal de Negreiros pelejando contra os holandeses também se punham a mesma questão. Mas evidentemente teriam respostas diferentes para a própria perplexidade.

Daqui a cem, duzentos, trezentos anos se poderá fazer outro relatório do Banco do Brasil sobre este tema. O país já não será o mesmo, embora os intelectuais procurem o ontem no hoje e queiram projetar o hoje no amanhã . A pergunta será a mesma, mas as respostas serão necessariamente diferentes. A menos, é claro, que ocorra episódio semelhante ao do fim do Império Romano e o mundo se reorganize de outra forma, talvez sem as nacionalidades como as conhecemos hoje. 

Com efeito, na Europa, África e Ásia, neste século, países trocaram de fronteira e de nomes, outros surgiram e desapareceram. 

E há caso de comunidades como a dos judeus, dos palestinos e dos ciganos que existiram ou existem até sem território. Neste sentido, a América tem sido privilegiada, pois tem mantido seu mapa sem grandes transformações nos últimos séculos.


No livro "Caráter nacional brasileiro" Dante Moreira Leite reuniu os muitos conceitos de brasilidade expressos desde nossas origens até a metade deste século. É um painel amplo e contraditório. Essa contradição ou dialética sempre existiu. Os autores românticos eram ufanistas. Os modernistas viraram o Brasil pelo avesso, radicalizaram a questão e até chegaram, como Drummond, a duvidar se o Brasil e os brasileiros realmente existiam. 

Nas últimas décadas mais teorias surgiram, diferenciando e enriquecendo esse acervo. E assim o país se constrói entre ufanismo e crítica, entre paráfrase laudatória e paródia crítica. O sec. XXI está aí. 

É possível até que ele tenha começado quando caiu o muro de Berlim e a internet descentralizou de vez a informação e redistribuiu as fontes de poder. 

Ao se fazer a pergunta sobre a brasilidade hoje, de uma coisa pode-se estar certo: a brasilidade não se contenta mais com a territorialidade satisfeita, não se exercita mais numa vocação imperial, não se basta nas disputas nacionalistas. Algo de novo está se configurando. E a primeira condição para se ver o novo é saber assinalar, destacar, descartar ou rearticular o que ficou velho.

Quem tem ouvidos, ouça, e quem tem olhos, veja, diz o pregador.
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Na raça e na paz Dele,
J. Braga.

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