Fragmentado - Alfredo Roberto Marins Júnior
“Que essa tensão que me corrói por dentro seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso , mas a outra metade é um vulcão.”
Metade
Oswaldo Montenegro
Se alguma vez você teve a oportunidade de ler “O médico e o monstro” de Robert Louis Stevenson, pode ser que se recorde de uma passagem da confissão do Dr. Henry Jeckyl, onde ele afirma (ou Stevenson afirma através dele) que o homem não é autenticamente um, mas sim dois, fazendo referência ao seu outro, (o monstro) Edward Hyde.
E na sequência, ele afirma que o próprio conhecimento foi limitado, impedindo-o de ir além, mas que a seu exemplo, outros constatariam que o homem seria reconhecido como um ser habitado por seres múltiplos, incongruentes e autônomos.
No auge da minha juventude (não que seja agora tão assim mais velho), quando me considerava imensamente esclarecido, excessivamente corajoso e virtualmente invulnerável, eu tinha um postulado próprio baseado na minha paixão pelas áreas exatas: eu acreditava fielmente que a física, a química e a matemática seriam capazes de resolver qualquer problema.
Obviamente eu estava errado. Eu reconheço hoje, quando o tempo já amansou aquela inconsequente vontade de mudar o mundo pelo poder das letras ou das armas. Já sabia também naquela época. Só não admitia.
Eu achava que seria fabuloso um mundo regido única e exclusivamente por números, onde eu pudesse elaborar uma equação para ser aprovado numa entrevista de emprego, uma análise para determinar as possibilidades de sucesso e só precisasse das premissas do livro “Como fazer amigos e influenciar pessoas” de Dale Carnegie para expandir a minha rede de contatos.
Mas a minha teoria tinha uma falha: eu não conseguia expressar com nenhuma função a satisfação de ler um poema de Mário Quintana, nem minha empatia ao sofrimento da figura pintada no quadro “O grito” de Edvard Munch, tampouco a emoção que me domina ao ouvir a Ária da Suíte nº 3, de Johann Sebastian Bach.
Eu não sabia onde em mim ficava o fragmento que tinha aquelas necessidades, mas percebia que ele não estava só: havia um que gostava de haicais, outro que admirava estampas de selos, outro que gostava de tomar chuva. Necessidades incompatíveis a alguém que desejava elaborar equações para a vida.
Temos afinidades com estes fragmentos, com estas situações fragmentadas. Não é a toa que Ganesha é um dos deuses mais populares da mitologia hindu. Ele é um deus composto por muitos fragmentos representando o multifacetamento humano. Sua imagem é composta de três animais: homem, elefante e rato, todos com profunda significância simbólica individual e coletiva.
Ganesha é o filho que Parvati criou do próprio vestido, cuja cabeça foi incinerada por Shiva. Após este ato, no mínimo grosseiro, o destruidor sentiu remorso e não tendo como recriar o bebê destruído, procurou como reconstituí-lo. Próximo dele, havia um elefante (com uma só presa), em agonia. Ele esperou que o elefante morresse, cortou-lhe a cabeça e a colocou no lugar da que destruíra. Nascia Ganesha.
Sua cabeça de elefante indica fidelidade, inteligência e poder. O fato de ele ter apenas uma única presa (a outra está quebrada) indica sua habilidade de superar o dualismo. As orelhas abertas denotam sabedoria e habilidade de escutar pessoas. A tromba curva indica potencialidade intelectual.
Na testa,ele possui o Trishula (símbolo do tridente arma de Shiva) que simboliza o tempo e sua superioridade sobre ele. Sua barriga simboliza a benevolência da natureza e a habilidade de de sugar os sofrimentos do Universo. A posição de suas pernas (uma descansando e outra em pé) indica o equilíbrio entre o mundo material e o espiritual.
Os quatro braços representam os quatro atributos do corpo: mente, intelecto, ego e consciência. Numa de suas mãos ele segura uma machadinha, símbolo da cessação dos desejos que trazem dor e sofrimento. Na segunda mão segura um chicote, símbolo da força para expulsar os apegos mundanos. A terceira mão está em uma pose de bênçãos, e quarta segura uma flor de lótus que simboliza o mais alto objetivo da evolução humana, a realização do seu verdadeiro eu.
A montaria dele é um rato, que representa sabedoria, talento e inteligência. Também a investigação minuciosa de um assunto difícil, já que um rato vive uma vida de esquadrinhamento nos esgotos.
Uma divindade plural, complexa e cheia de símbolos, que representa, talvez, a complexidade de nossa própria fragmentação.
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Na raça e na paz Dele,
J. Braga.
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