Vocação: ainda existe? - Leo Lama

COMPRAR CARRO, CASA, ENRIQUECER, TER PRAZER E SUCESSO, A ISTO SE RESUME A VIDA? MUITAS TERAPIAS E IGREJAS DE OCASIÃO ASSUMEM O DESCONFORTO EXISTENCIAL DOS ADOLESCENTES PERDIDOS

Mais do que uma provocação, a pergunta do título é sincera e investigativa. A vocação, um dia centro da existência humana, a cada ano é relegada a um papel secundário, quase inexistente nos locais onde deveria ser incentivada a sua busca. Ou escuta, para ser mais exato, lembrando que a palavra vem do verbo latino vocare, e quer dizer "chamar". Portanto, quem atua por vocação sente que é chamado por uma voz, que pode ser a de Deus, a da humanidade, da História, ou mesmo a do sentido da vida, como queiram. Mas o que pais, professores e amigos falam sobre vocação aos jovens de hoje? O que se sabe sobre o assunto?
Ser vocacionado durante muito tempo era sinônimo de ser poeta, artista ou músico, e ser profissional ou “sério” era ser engenheiro, médico ou advogado. Mas, a atividade profissional não representa o chamado interior. As qualidades que alguém demonstra para tal e tal coisa sim, e estas podem ser empregadas em qualquer atividade que não as iniba. Portanto, a escolha da profissão deve estar de acordo com as possibilidades que esta oferece para a vocação e não para o salário.
Tenho visto adolescentes desesperados em frenéticas buscas por escolhas que tragam segurança financeira e deem a eles o que os casamentos desestruturados de seus pais não deram. Recusam viagens e anos sabáticos depois da formatura e se torturam em uma urgência histérica cobrando de si mesmos passar no vestibular como se o mundo fosse acabar amanhã. Essa prole é fruto da minha geração, que foi jovem nos anos 80, e 90, destrambelhada e sem causa, que tarda em amadurecer, com muito poucas conquistas vocacionas e quase nenhuma referência de afeto sadio. Pois se vocação é justamente o centro, o farol interior que cada um de nós possui e que equilibra a respiração e da o norte, como um descentrado vai falar de núcleo a alguém sem transmitir a mesma ansiedade que o assola? Como um jovem pode acreditar em seus pais e em seus professores quando intimamente não estão sendo sinceros e coerentes? Como um professor pode falar em vocação se ele é um escritor frustrado que está dando aula para pagar as contas?
Existe nas tradições espirituais, por exemplo, uma recomendação de que mesmo que alguém não seja capaz de se cuidar, aconselhe aos outros que se cuidem. O que seria dos médicos se não seguissem tal indicação? O problema pode estar no discurso pouco convincente. A insegurança, o medo e a amargura transparecem, as angústias que as contas do fim do mês trazem embaralham a fala de quem tenta discorrer sobre escolhas mais próximas ao coração. É preciso falar, porém, quando os pais não conseguem manter e cumprir a palavra, os filhos aprendem a ser surdos para se defender.

Então, vemos jovens preocupados em pesquisar sobre profissões que podem ser lucrativas, que têm mercado fácil e empregos garantidos. No caso dos mais sensíveis ou daqueles ainda em estado de indefinição, há entrega a paralisias e depressões impenetráveis, um profundo desinteresse por tudo. Mas o que há de interessante nesta sociedade? Existe realmente algo que estimule mais um jovem do que um baseado, um tiro de cocaína ou o sexo como tapa buraco de carências? Quem pode culpar os desistentes quando temos poucos atrativos a oferecer no lugar das drogas, das bebidas e de uma sexualidade sem conteúdo? Comprar carro, casa, enriquecer, ter prazer e sucesso, a isto se resume a vida? Muitas terapias e igrejas de ocasião assumem o desconforto existencial dos adolescentes perdidos. Entretanto, tudo parece ser alimento para o sistema e para a indústria da falsa fé e da psicologia barata - Freud e Jesus não poderão nos salvar quando nos falta a virilidade espiritual dos que escutam o chamado.

Em uma população formada por portugueses banidos, negros escravizados e índios descaracterizados de suas raízes é fácil intuir a herança de uma profunda desorientação em termos vocacionais. O Brasil, que há muito é país de terceiro mundo, suposto emergente, não tem a menor tradição no assunto aqui tratado. Não fossem os imigrantes, principalmente árabes, judeus, japoneses e alemães, nada se saberia. Porém, em país miserável é possível pensar em outra coisa a não ser em comer e sobreviver, já que profissão ou ocupação social são coisas diferentes de vocação. Nada mais obtuso, aliás, do que um teste vocacional ou a confusão criada em torno do prazer e da remuneração.

Tudo na vida é uma questão de sentido e não de explicação ou lógica. É a perda do sentido que mais ressente e recalca a alma. O pagamento também precisa vir do sentido, caso contrário poderá virar acúmulo de vazio ou vida medíocre. Sim, somos capazes de nos esforçar, nos submeter, nos manter em empregos que sustentem nossos falsos confortos ou nossos temores, mas somos cada vez mais incapazes de saber por que realmente estamos no mundo.

Dedicar-se de corpo e alma a uma atividade, sem prazer ou ordenado, ainda que dê prejuízo e dor de cabeça, é quase incabível ao mundo de hoje, mas é justamente nesse tipo de atuação que está o apelo vocacional.

Ser vocacionado não é ter prazer no que se faz, é realizar um desejo essencial quando em cada um algo clama por escuta e realização. 

Não é a identidade ou a identificação que define um ser, é a singularidade - aquilo que, como diria Paul Ricouer, só você pode fazer e ninguém no mundo pode fazer no seu lugar, dentro de uma profissão ou de um relacionamento, no trabalho ou na família.

Se este fosse um artigo de autoajuda, eu apontaria um caminho do alto de uma sabedoria esquemática e postiça. Como não é, deixo a lembrança de que a vocação é um Bem eterno da humanidade e está a disposição, como uma bela adormecida nos corações dos sonolentos.

Quem tiver ouvidos de ouvir, que ouça.

Leo Lama, 46, é dramaturgo, roteirista, poeta e músico. Autor da peça Dores de Amores, transformada em filme com estreia prevista para o segundo semestre deste ano, autor do livro-DVD “O Nome do Cuidado” com Paulo Rosenbaum, e do livro para adolescentes “Videoclip Blues”, entre outros.)
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Na raça e na paz Dele,
J. Braga.

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