Merthiolate e Educação: uma lição dos anos 80

Pode deixar que eu sopro, filho!
Sidnei Oliveira

Chegou o dia de inaugurar o asfalto novo na rua. Depois de muito tempo sofrendo com terra e barro, finalmente ele teria a chance de andar de bicicleta por um piso livre de buracos e deformações.


Na nova realidade as manobras seriam mais arrojadas e com uma velocidade muito maior. As frustrações sofridas pelos constantes furos nos pneus de sua bicicleta, agora estavam com os dias contados.

Surgiram novas possibilidades e com a natural ansiedade juvenil, era inevitável que, no primeiro passeio pela rua reformada, ocorresse um pequeno acidente.

Com o joelho sangrando ele foi para a casa empurrando a bicicleta. Sabia que encontraria uma dor maior do que a que estava sentindo por causa do tombo.

Sua mãe tinha uma receita infalível para aquele tipo de machucado - aplicar álcool seguido de mercurocromo - passar por aquele “martírio” sempre fez ele ficar mais atento e evitar ou esconder os tombos. Contudo, daquela vez, o destino não pouparia o sofrimento.

Ao chegar, suplicou para a mãe não mexer no machucado. Passar pela dor alucinante da aplicação do álcool e ainda sofrer o vexame de ir brincar com a perna manchada de vermelho era insuportável.

Percebeu que as facilidades dos dias atuais estão protegendo as crianças de “dores” importantes, e isso aumenta a responsabilidade na formação dos valores e do caráter destas crianças usando principalmente o diálogo.

Só que desta vez sua mãe não agiu como de costume. Ao invés do enorme vidro de álcool, do pequeno frasco de mercurocromo e da caixa de algodão, ela mostrou um pequeno vidro com um rótulo onde estava escrito MERTHIOLATE.


Antes de aplicar o produto, ela lavou o machucado retirando toda areia e sujeira acumulada, aproveitou o momento para explicar que o novo produto era de um vermelho mais claro e que não deixaria manchas. Isso aliviou bastante a tensão.

Abrindo o pequeno frasco, uma pequena pá de plástico, grudada no interior da tampa, surgiu com uma quantidade do produto que tinha uma cor rosada.

Delicadamente a mãe levou aquela pazinha diretamente para a ferida.
- AAAAAAAAAiiiiiiiiii!

O grito que ele deu foi tão alto que o frasco salto da mão de sua mãe derramando todo líquido por sua perna. Chorando disse:
- Mãe este negócio arde mais que fogo! Tá queimando! Tá queimando...

Ela reagiu carinhosamente...

- Pode deixar que eu sopro, filho!

O alívio acontecia lentamente e apesar de sua perna estar completamente manchada pelo produto derramado, ele sentia conforto a cada sopro que recebia de sua mãe.

Muitos sopros foram necessários durante a infância e mesmo depois que ele cresceu, o MERTHIOLATE continuou a arder, somente suas reações mudaram. Os gritos de dor e os sopros carinhosos de sua mãe foram substituídos por caretas e sopros que ele mesmo dava em seus ferimentos.

Recentemente soube que alteraram a fórmula do produto. Agora, o MERTHIOLATE não arde mais e é completamente incolor.

Ele percebeu esta mudança em uma ocasião, quando seu filho havia se machucado, também andando de bicicleta. Quando o menino chegou mostrando o ferimento, percebeu que ele não tinha receio da aplicação do produto, aliás, dispensou qualquer pedido de ajuda, apenas lavou o ferimento e perguntou onde estava o MERTHIOLATE.

Neste momento, o orgulho inicial provocado pela “autonomia” da criança, deu lugar a um sentimento de perda de algo que havia sido muito importante para ele na infância – aquela carinhosa frase dita por sua mãe:

- Pode deixar que eu sopro, filho!

Lembrou-se de todos os tombos, das aplicações do MERTHIOLATE e de como estas “dores” foram fundamentais em sua formação e em suas escolhas.

Percebeu que as facilidades dos dias atuais estão protegendo as crianças de “dores” importantes, e isso aumenta a responsabilidade na formação dos valores e do caráter destas crianças usando principalmente o diálogo.

Claro que ele não deseja o sofrimento do filho, contudo, lamentou profundamente que ele não tenha mais o privilégio de descobrir, usando MERTHIOLATE, como é poderoso o “sopro da mamãe”.

Dedico esta crônica a memória de minha mãe, que sempre usou muito MERTHIOLATE nos filhos e netos e neste mês faz 9 anos que ela deixou de soprar.
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Na raça e na paz Dele,
J. Braga.

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