A leitura dos jornais nos torna estúpidos? - Rubem Alves
O nome não me era estranho. Eu já o vira de relance em algum jornal ou revista. Mas não me interessei. Aquele nome, para mim, não passava de um bolso vazio. Eu não tinha a menor idéia do que havia dentro dele. Fui então até minha secretária e lhe perguntei envergonhado: ‘Natália, quem é Adriane Galisteu?’ Esse era o nome do bolso vazio. Ela deu uma risadinha e me explicou.
A resposta é a tradicional: ‘A missão da imprensa é informar.’ Pensa-se que, ao informar, a imprensa educa. Falso. Há milhares de coisas acontecendo e seria impossível informar tudo. É preciso escolher.
À medida em que ela explicava, as coisas que eu havia lido começavam a fazer sentido e eu me lembrei de uma história que minha mãe contava: uma princesinha linda que, quando falava, de sua boca saltavam rãs, sapos, minhocas, cobras e lagartos... Terminada a explicação, fiquei feliz por não ter lido. Lembrei-me de Schopenhauer: ‘No que se refere a nossas leituras, a arte de não ler é sumamente importante. Essa arte consiste em nem sequer folhear o que ocupa o grande público. Para ler o bom, uma condição é não ler o ruim: porque a vida é curta e o tempo e a energia escassos... Muitos eruditos leram até ficar estúpidos.’ Existirá possibilidade de que a leitura dos jornais nos torne estúpidos?
Pensar não é ter as informações. Pensar é o que se faz com as informações. É dançar com o pensamento, apoiando os pés no texto lido: é isso que me dá prazer.
O que está em jogo não é a dita senhora Galisteu, que pode pensar o que lhe for possível pensar. O que está em jogo é o papel da imprensa. Qual a filosofia que a move ao selecionar comida como essa para ser servida ao povo?
A resposta é a tradicional: ‘A missão da imprensa é informar.’ Pensa-se que, ao informar, a imprensa educa. Falso. Há milhares de coisas acontecendo e seria impossível informar tudo. É preciso escolher. As escolhas que a imprensa faz revelam o que ela pensa do gosto gastronômico dos seus leitores. Jornais são refeições, bufês de notícias selecionadas segundo um gosto preciso. Se o filósofo alemão Ludwig Feuerbach estava certo ao afirmar que ‘somos o que comemos’, será forçoso concluir que, ao servir refeições de notícias ao povo, os jornais realizam uma magia perversa com seus leitores: depois de comer eles serão iguais àquilo que leram.
Parei de ler os jornais não por não gostar de ler, mas precisamente porque gosto de ler. As notícias dos jornais são incompatíveis com meus hábitos gastronômicos: leio bovinamente, vagarosamente, como quem pasta... ruminando. O prazer da leitura, para mim, está não naquilo que leio, mas naquilo que faço com aquilo que leio. Ler, só ler, é parar de pensar. É pensar os pensamentos de outros. E quem fica o tempo todo pensando o pensamento de outros acaba desaprendendo a pensar seus próprios pensamentos: outra lição de Schopenhauer.
Pensar não é ter as informações. Pensar é o que se faz com as informações. É dançar com o pensamento, apoiando os pés no texto lido: é isso que me dá prazer. Suspeito que a leitura meticulosa e detalhada das informações tenha, frequentemente, a função psicológica de tornar desnecessário o pensamento. Assim, ao se entupir de notícias como o comilão grosseiro que se entope de comida, o leitor se livra do trabalho de pensar.
A maioria das notícias dos jornais, eu não sei o que fazer com elas por não entendê-las. Penso: se eu não entendo a notícia que leio, o que acontecerá com o ‘povão’? Outras notícias só fazem explicitar o que já se sabe. Detalhes, cada vez mais minuciosos, das tramóias políticas e econômicas de um Sarney, de um Renan, nada acrescentam ao já sabido. Esse gosto pelo detalhe escabroso deriva da pornografia, que extrai os seus prazeres da contemplação dos detalhes sórdidos, que são sempre os mesmos.
A dita reportagem sobre a tal senhora Galisteu e as notícias sobre Renan e Sarney atendem às mesmas preferências gastronômicas. Será que as notícias são selecionadas para dar prazer aos gostos suínos da alma?
Os órgãos de imprensa têm de contribuir para a educação do povo. Mas educar não é informar. Educar é ensinar a pensar. Os jornais ensinam a pensar? Repito a pergunta: Será que a leitura dos jornais nos torna estúpidos?
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Na raça e na paz Dele,
J. Braga.
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