Tropa de Elite e o combate ao Sistema na vida real
Recentemente postei um texto do escritor Luciano Pires sobre “Água e Fogo”, que codinominei: “Você é profeta como fogo ou como água?”. Esse tema mexe bastante comigo. Talvez por vivenciar situações que colocam em xeque minhas convicções e valores. A propósito disso, venho me lembrando muito de dois personagens centrais do filme Tropa de Elite 2: o capitão Nascimento e o humanista Fraga.
Resolvi escrever sobre isso a partir da inspiração do filme e desses dois personagens. A ideia resumo seria: o profeta fogo bate de frente com o sistema, o profeta água prefere combatê-lo por dentro, paulatinamente.
Fraga: o profeta fogo. No começo do filme percebemos que se trata de um personagem dado a posicionamentos ideológicos de esquerda, de forma consciente. Suas aulas parecem bem concorridas porque o professor universitário consegue traduzir sistematicamente as razões de insatisfação e as críticas reprimidas de uma parcela da sociedade que se indigna com o “sistema”. O professor Fraga se portava como fogo em suas aulas, na ONG em que trabalhava, em eventuais manifestações de rua e, oportunamente, botou a boca no trombone da mídia quando do massacre cinematográfico dos presidiários do complexo de Bangu.
Nascimento: o profeta água. Paralelamente, no começo do filme, o distinto oficial do BOPE se manifesta como personagem dado a posturas mais pragmáticas e, talvez inconscientemente, de ideologia conservadora. Seu trabalho é desarticular e trucidar uma parte do status quo social mais evidentemente apodrecido: o tráfico. Sem se deixar ludibriar, percebe nas milícias uma faceta meio torta do “sistema” que o ajudava em seus objetivos e, assim, as tolera. O capitão Nascimento se portava como profeta água, pois percebia, dia-a-dia, como funcionava todo o mecanismo ao seu redor, mas se permitia moldar como a água faz em recipientes de formatos diferentes. Sua perspectiva parecia ser de “consertar” os problemas, no momento certo, estando dentro.
Pois bem. Essa pode ser uma ilustração capaz de encontrar profundos ecos no inconsciente coletivo. Porém... se dermos uma segunda olhada, podemos perceber um significativo movimento do começo para o fim da película: o humanista Fraga e o capitão Nascimento trocam de perfil profético. A água vira fogo e o fogo vira água. Senão vejamos.
Fraga: o profeta água. Do meio para o fim do filme Fraga já é deputado estadual. Se habilita a perceber o comportamento dúbio de seus colegas, consegue intuir a real atuação das milícias e, em certa feita, tenta até emplacar uma CPI. Foi forçado a não avançar na proposta. No filme, o presidente da Assembleia Legislativa e outro colega suspeito de falcatruas o fizeram entender que “não existe CPI em ano de eleição”. Prevendo o desgaste e a falta de força política, Fraga adiou os planos. Como água, evaporou. Mas voltaria a chover de novo. E choveu, muito. Parecia prever que seu tsunami chegaria, cedo ou tarde, até Brasília.
Nascimento: o profeta fogo. Do meio para o fim do filme, as descobertas que o capitão Nascimento fazia sobre o envolvimento de seus superiores nas mazelas do “sistema” o incomodavam. A gota d’água foi perceber que tinha sido sumariamente instrumentalizado a fazer o BOPE abrir espaço para os policiais corruptos nas favelas. Com o agravante de saber que seu chefe na Secretaria de Segurança Pública e o próprio governador eram condescendentes com toda aquela podridão. Arrisco-me dizer que, até ali, o personagem não mudaria sua forma de atuar. Afinal de contas, ele era parte daquilo tudo. O que teria que fazer, de posse das informações que tinha, era minar aquilo por dentro, como sempre. Assim, procurou o deputado Fraga para entregar-lhe as provas que tinha. Era algo impessoal. Era. Mexeram com o filho dele, que ficou entre a vida e a morte. Agora era pessoal. E o Nascimento botou fogo no “sistema”. Só pra começar, realizou um sonho de 9 em cada 10 brasileiros: encheu um político corrupto de porrada. Sem dó e cheio de ira, sabia que aquilo não resolveria nada e ainda teria consequências. Dane-se! O circo começava a pegar fogo, mas faltava o essencial. Faltava a face mais eficiente do profeta fogo: denunciar a corrupção do “sistema”, municiado de provas e evidências. E foi isso que ele fez. Sem mais paciência e ávido por mudanças, Nascimento botou a boca no trombone em plena Assembleia Legislativa Fluminense e, no filme, detonou a maior queima de arquivo da história do Rio de Janeiro. Que filme!
Você se considera fogo ou água? Todo mundo que é “fogo” se orgulha de seus valores, faz questão de defendê-los publicamente e costuma ser ácido ao manifestá-los frente aos opositores. Também não é afeito a concessões. Grita, briga e esperneia quando julga necessário e se orgulha, sinceramente, disso. Aqueles que são “água” também procuram preservar seus valores, só que julgam ser mais efetivo minar o sistema por dentro, sem bater de frente. Por isso fazem concessões. O grande dilema do profeta água é estabelecer o exato limite entre aquilo que é concessão e aquilo que se transforma em contaminação. Com razão, pois, como bem observou Pires, “nunca ouvi falar de fogo contaminado. Mas de água...”.
A inevitável comparação entre o que é melhor, se ser profeta fogo ou profeta água, pode ser estéril. O que importa mesmo é ser inteligente. Saber discernir quando, estrategicamente, é mais pertinente ser fogo ou ser água. É natural que cada pessoa, a partir de seu temperamento, incline-se a um ou outro lado. Inteligente é o que aprende quando e como atuar, principalmente quando o contexto pede aquilo que não lhe é o mais natural.
Assim, as convicções de profetismo “água” ou “fogo” podem mudar, mas os valores permanecem. E isso é o que importa.
Na raça e na paz Dele,
J. Braga.
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