O que é você? - André Camargo
Você não é a sua conta bancária, nem a marca da calça que você usa. Essa é fácil. Nascemos peladinhos e, é claro, sem um tostão no bolso. Muita água tem de passar debaixo da ponte até conquistarmos nosso primeiro cartão de crédito, uma Ferrari e o último PlayStation. Ou até nos darmos conta de que não vai ter nada disso e a vida é isso mesmo. Depois, as coisas vão acontecendo e tal, e uma hora a gente morre.
Outro dia assisti à exumação dos restos mortais de dois familiares. A bela gravata e o terno que escolhemos para o velório não passavam de trapos apodrecidos. Rasgavam fácil. Os ossos escuros e avermelhados, cobertos de terra. Foram todos para uma urna de plástico. Quer dizer, cada conjunto de ossos foi para uma urna diferente.
Não, você não é os seus ossos, nem a carne que a terra come. Talvez você pense que é esse que você vê no espelho. Mas o que é que você vê? Só você sabe.
Se você fosse as suas idéias, crenças e valores, seus sentimentos e experiências passadas, assim como seus impulsos e expectativas para o futuro, eles teriam de permanecer o que sempre foram, e continuar assim – porque esse, enfim, seria você. Mas eles mudam o tempo todo... Não dá pra dizer que você é alguma coisa que cada hora está de um jeito. A visão das coisas do velho não é igual à da criança.
Ou a sua mente – você não pode ser algo que não dá pra ver, apalpar, medir, cheirar, morder, nada. Onde fica a mente? No cérebro? Em que parte do cérebro? Nunca vi uma mente.
E o seu corpo... A maior parte das pessoas se identifica bastante com o próprio corpo. Quando querem saber quem são, geralmente terminam às voltas com uma imagem mental do próprio corpo.
Por que será que a gente diz “meu” corpo? É como se o corpo fosse igual a um carro – da mesma forma que o carro leva a minha pessoa para passear, meu corpo leva minha mente para passear... desde que não tenha que andar muito. Mas se o corpo é “meu”, não é “eu”, certo? Algo que eu tenho não pode ser aquilo que eu sou.
A gente também diz “meu” rosto. Acho que a coisa mais “eu” que dá pra ver é o meu rosto. Ainda assim – curioso – eu sou a pessoa que menos intimidade tem com ele. Porque eu não passo o dia na frente do espelho. As pessoas que eu encontro, então, o tempo todo, têm uma visão melhor de “mim” do que eu mesmo. Meus familiares, colegas e amigos conhecem melhor do que eu mesmo minha fisionomia, minhas expressões faciais costumeiras, meus trejeitos, minhas caretas. Acho que meu rosto é mais deles do que meu.
Agora o cérebro. Esse é legal, porque podemos até viver sem um braço, ou os dois. Sem as pernas – mas não sem o cérebro. Ah, e o coração e os pulmões. Os rins... Mas também não podemos viver só com os órgãos essenciais. Talvez sejamos o conjunto. Mas o conjunto do quê – dos órgãos essenciais?
Eu penso nas minhas mãos, meus braços, minhas pernas... Detestaria perder alguma dessas coisas – eu as considero muito “minhas”, gosto delas e prefiro que continuem assim. Mas não são indispensáveis – posso virar um toquinho e continuar sendo eu.
Faz pouco tempo, fui conhecer um hospital que atende pacientes de câncer pelo SUS. No departamento de cabeça e pescoço, é muito comum eles tratarem as pessoas removendo, por meio de cirurgia, toda a região onde se instalou o tumor. Isso significa que a gente se depara, pelos corredores, com pessoas sem nariz, sem olho, sem mandíbula, sem parte do crânio, sem metade do rosto. Filme de terror.
Lembro de um senhor que vi sentado na sala de espera. Não entendi como aquele ser podia continuar vivo – parecia saído daquele bar de “Guerra nas Estrelas”, ou talvez algum alienígena de “Men in Black”. O que restava da cabeça dele era algo talvez não muito maior do que uma pera. Mas ele estava lá.
Você pode ter um braço e uma perna amputados – pode ter seu rosto desfigurado e ainda assim sobreviver. Pode até ser feliz. Mas não pode parar de respirar. O dia em que você não conseguir realizar a próxima inspiração, já era. O que significa que você precisa da atmosfera funcionando direitinho para poder seguir adiante. O que por sua vez significa que a atmosfera faz mais parte de você do que seu braço, suas pernas e seu rosto. Sem ar, morreu.
Da mesma forma, você precisa do sol brilhando. Veja o que aconteceu com os dinossauros – sem a luz, o calor e a energia do sol, vamos todos para o brejo. E a água também, evidentemente. Se não temos água potável, perecemos ainda mais rápido do que na ausência de comida. O sol e a água fazem parte de você, eles na verdade são partes indispensáveis, porque sem eles você não existe. Como você poderia ser você mesmo em uma dimensão qualquer onde não houvesse o sol nem água?
O nosso corpo é composto de algo como 75 por cento de água. E me contaram, outro dia, que existem tantos microorganismos estrangeiros habitando o interior do nosso corpo que há em nós mais células desses serzinhos não-eu do que células verdadeiramente humanas. O que eu acho difícil de acreditar, mas vá lá.
As plantas e os animais também precisam do ar, do sol e da água – e da terra, naturalmente. Assim como nós dependemos da terra, das plantas e dos animais para nos alimentar. A gente já vem com essa doença de fábrica – e temos de nos manter constantemente alimentados para não sentir os sintomas: fome, fadiga, fraqueza, estresse, irritação, desespero, dores musculares, confusão mental e assim por diante. Vai ficando cada vez pior – até a próxima dose. E estamos curados por algumas horas.
Podemos viver sem um rim, sermos cegos, surdos e mudos, ainda assim, se plantas e animais desaparecerem, nós desaparecemos junto. As plantas e animais, em equilíbrio ecológico, são uma parte mais “nossa” do que os nossos sentidos físicos e órgãos internos. Não sobrevivemos muito tempo sem comida.
Assim também com os seres microscópicos – do seu invisível equilíbrio depende a nossa existência. E os seres macroscópicos: seu chefe, sua sogra, seu vizinho. Como somos seres sociais, precisamos de um contexto cultural humano para não enlouquecer.
Você assistiu àquele filme, “Náufrago”, com o Tom Hanks (que eles criaram só para fazer propaganda da FedEx)? Lembra do Wilson? E o nativo Sexta-feira, que Robinson Crusoé encontrou na ilha? No mais, nenhum ser humano pode chegar a ser humano se não na presença de ao menos um outro ser humano que lhe troque as fraldas e o ensine a se comunicar. Já ouviu falar no Kaspar Hauser?
Sem o suporte afetivo de uma rede de relações sociais – os colegas de trabalho, a atividade que gera benefícios à comunidade, os familiares e amigos, as celebridades da hora, ou mesmo os desconhecidos que perambulam por aí – sem essa turma toda, tendemos a nos deprimir.
Precisamos de rostos humanos que nos devolvam nosso olhar. Para amar, para odiar, para ignorar, imitar, discordar, xingar. Pelo menos de vez em quando. Caso contrário, a vida vai se esvaziando de sentido e a energia vital vai murchando, até definhar completamente. Deste ponto de vista, o outro talvez seja mais você do que você mesmo.
Na verdade, dependemos da atmosfera, dos oceanos, do sol, das pessoas e do planeta Terra como um todo. Não fosse a força que nos mantém colados – a gravidade – sairíamos flutuando a esmo pelo espaço sideral, como bolhas de sabão. O que não teria como dar certo.
Você é o seu coração, sua mente, seus pulmões, o sol, a lua, o vento as florestas os animais bactérias e vírus o ar a poluição das máquinas computadores internet pernilongos sapos baleias livros coca-cola. Quando você fechar os olhos pela última vez, tudo isso desaparecerá com você. Para sempre.
Afinal, isso é o que você é: tudo o que já foi e será pensado, tudo o que já foi e será imaginado, sentido e vivenciado, do começo ao final dos tempos, em perpétuo movimento. Se não isso, o que é você?
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Na raça e na paz Dele,
J. Braga.
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