A década em que viramos voyeurs e juízes da vida alheia

Um bom texto para iniciar reflexão sobre nossas mudanças enquanto telespectadores ao longo dessa década. É difícil manter algum discurso moralizador frente a tais programas. Assumo há algum tempo uma postura de "tirar proveito do que for possível".
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Pegue algumas pessoas anônimas ou famosas, mas sedentas por dinheiro e fama, e as confine num ambiente fechado. Submeta-as a diferentes provas, provações e humilhações. Filme tudo com o maior número possível de câmeras. Obrigue-as a competir o máximo entre elas. Estimule traições e romances. Exiba, periodicamente, para o público, resumos com os melhores –e piores – momentos desta situação absurda.

Eis a receita, simplificada, de um reality show. Não é uma invenção do século 21, longe disso, mas se tornou uma mania mundial na década que se encerra, graças à popularização de dois programas exibidos nos Estados Unidos em 2000, “Survivor” e “Big Brother”.
No Brasil, “Survivor” virou “No Limite”. Sua primeira edição estreou em julho de 2000 e foi vencida pela cabeleireira Elaine (em pé, na foto acima). Em sua aclimatação aos trópicos, “Big Brother” estreou em janeiro de 2002 com um terceiro “B”, de Brasil”, no título.
Entre um e outro, houve “Casa dos Artistas”, uma surpresa de Silvio Santos (à dir. com o elenco da primeira edição), questionada na Justiça pela Globo, sob acusação de plágio. O programa tinha muitas semelhanças com “Big Brother”, mas era protagonizado por figuras já conhecidas do público.
“Acho absurdo dizerem que não posso pôr pessoas dentro de uma casa e filmar seu dia-a-dia. Seria o mesmo que dizer que só pode haver um show de auditório porque alguém fez isso primeiro”, disse Silvio Santos na ocasião.
A Globo enfrentou acusação semelhante com seu “No Limite” e se defendeu com argumentos parecidos aos usados pelo dono do SBT. “Não copiamos os norte-americanos. Só seguimos a tendência mundial de fazer programas desse estilo”, disse, então, o diretor do programa brasileiro, José Bonifácio de Oliveira, o Boninho.
Na porteira aberta por estes três programas, passou uma verdadeira boiada. Só em 2010, para citar programas com algumas destas características exibidos na tevê aberta, a lista inclui: “BBB10”, “Aprendiz”, “Ídolos”, “Troca de Família”, “A Fazenda 3”, “Esquadrão da Moda”, “Busão do Brasil”, “Hipertensão”, “Solitários”, “Dr. Hollywood”.
O que explica o sucesso, a permanência e a repetição deste tipo de programa na tevê? Em primeiro lugar, é preciso insistir que não se trata de um fenômeno brasileiro, mas global. Dois fatores, na minha visão, ajudam a entender o fascínio pelo reality show.
O primeiro, e mais óbvio, é a experiência do voyeur – esta possibilidade de enxergar o outro sem ser visto. Para este efeito capturar o espectador, ele precisa acreditar que está, de fato, assistindo “a vida real”. Daí a insistência em falar de “realidade”, “cotidiano”, “intimidade” nestes programas.
Alguém lembrará que os participantes criam “personagens” dentro do confinamento. É verdade. De forma consciente, ou não, Kleber Bambam (ao lado) fez isso já na primeira edição do BBB. Mas não importa. O que interessa ao público é ter a percepção que está espiando a intimidade de alguém de carne e osso, seja ele autêntico ou não.
E aí entra o segundo fator que, acredito, justifica a permanência desta família de programas na televisão – a possibilidade de julgar o outro. Os diferentes instrumentos de interação, explorados de forma cada vez mais eficiente, estimulam o público a agir como juízes do caráter, da moral e da ética alheia.
Como se sabe, um falso espelho permite às emissoras filmarem os participantes. Graças a ele, podemos ver sem sermos vistos, mas é impossível não pensar que, no fundo, estamos nos vendo ali.
Maurício Stycer
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Na raça e na paz Dele,
J. Braga.

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